Prólogo

É aquela velha história…
Vampiros fingindo ser humanos fingindo ser vampiros…

Mas a maioria dos missivistas estão mortos…
O Theatre des Vampires há muito desfeito… — Nada poderia ter sido tão maravilhoso como Arte e repugnante como Conceito Ideológico…
Os Antigos dormem, ou apenas perderam o interesse pelo que tem Substância Material… — Recuso-me a falar dos que enlouqueceram…
Os que se fizeram de Heróis, um dia, foram tragados por uma Escuridão de Dúvidas e abarcados pelo que se revela sem abandonar o seu Mistério… — O Desespero Silencioso é um dos acometimentos mais terríveis sobre qualquer tipo de existência.




Então eu não estou aqui para ser herói, ou qualquer coisa assim… Eu sou um Pretexto para a Poesia… foi assim que fui concebido… foi assim que consegui manter alguma Sanidade…
Não que eu seja imune aos Lépidos Desesperos Devoradores de Alma… mas eu sempre fiz de tudo para me manter em movimento, no fluxo das coisas, desde antes de ser entregue ao Irremediável Poder das Trevas… — um dia eu conto essa história…
É por isso que eu continuo… e vou continuar até que o Sol devore este nosso Planetinha, vocês vão ver. E se quiserem ver mesmo… bom… vão ter de implorar por uma mordida…

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Admirável Mundo Novo… (Parte XVII) — A História de Órion… (Parte IX) — Sonhos do Lado Sombrio da Lua…

Entendas que o tempo e a própria percepção dele nos é diferente e deveras peculiar. Às vezes como se houvesse uma eternidade encerrada em certos momentos e eventos de nossa Existência Duradoura. O foco em algo específico pode nos levar a uma experiência assim. Subjetivamente e obsessivamente conseguimos extrair uma quantidade tal de detalhes desse algo específico, que ocorre o engendramento de memórias e experiências de uma total outra existência nossa; mas ainda assim a mesma. Ao passo que em outras circunstâncias podemos nos abstrair totalmente ao olhar uma pintura do Tenebrista Caravaggio, uma escultura do Gênio do Eterno Instante Lapidar: Rodin, ou uma simples porta de madeira cujos entalhes se assemelham a uma teia humana de intrigas. Podemos fazer isso até que o Sol e os Sinos do Inferno venham ao nosso encalço, ou até mesmo alguns dias, meses, ou anos sem conta, sem ao menos piscar, se tivermos abrigo e formos antigos o suficiente para nos mantermos acordados sob o avanço do Sol sobre a Terra. Bem, estou a dizer tudo isso para que entendas sobre essa questão do tempo e da percepção dele para nós. Para que entendas que durante quase quatro anos, Órion e eu, Endímion, estivemos lado a lado contemplando em silêncio o vazio, após aquelas últimas palavras de sua narrativa: “Mas antes de afundar mesmo, ouvi um barulho terrível como se fosse o urro da Terra. E a terra tremeu… e foi aberta, envolvendo-me numa queda eterna… Sim, acho que foi aí que comecei a cair de verdade…”

Destarte, repentinamente, em um tempo que pertencia apenas à sua compreensão, Órion continuou sua história narrando as sutilezas das cenas projetadas em minha mente:

“Como se eu estivesse afundando em algo melífluo. Melífluo e negro, algo doce e maligno. De uma profundeza imperscrutável, eu afundava vertiginosamente, desesperadamente tentando emergir de um abismo, tentando despertar de um pesadelo entretecido ao que é essencialmente absurdo. Entretanto aquele abismo tinha uma outra característica bastante peculiar: aquele abismo era eu. Quando constatei isso, quando entendi isso definitivamente… foi quando despertei. Um esforço derradeiro para agarrar minha consciência através de uma experiência rumo a obliteração e aniquilação total da minha existência; aniquilação e encerramento eterno em mim mesmo. Pensei estar encarando a morte; mas era apenas eu. Nunca tive tanto medo. E com esse sentimento meus olhos abriram. Meus olhos abriram e tudo eram cinzas…

Ofeguei buscando meu tornozelo pela imediata lembrança de um chacal cavando minha carne até os ossos, entalhando neles e em minha mente uma memória indelével de dor… mas permanecendo uma marca, nada mais que uma marca em minha pele. Ergui-me de uma espessa camada de cinzas, como se uma centena de anos tivesse passado. Ligeiramente intrigado pela sensação da distância com o solo, corri pela lenta tempestade de um inferno que deixara de queimar. “Condenado”. O ar tinha gosto de cinzas. “Condenado”. Não havia contrastes. O vento não soprava. O mesmo tom de cinza. “Condenado”; eu me ouvia dizer na minha própria cabeça.

Enquanto os flocos de cinzas pairavam no ar, eu corria. Não vi Syrius, Maera, ou meu cavalo; eu não via nada claramente. Eu era movido pelo desespero do não entendimento do que estava acontecendo, e pelo desespero de ter as imagens de Nim e de minha mãe em minha mente. De início pensei que a visão dos flocos de cinzas caindo lentamente me davam a impressão de estar correndo mais rápido do que eu poderia. Naquele momento acreditei que aquele sentimento despertou em mim alguma força adormecida. Um engano que jamais pensei ser possível naquele tempo. Quando comecei a colocar os pensamentos em ordem, eu já estava nas proximidades de Vatypetro. Nim esperava por mim, imóvel, coberta de cinzas. Seus olhos negros brilhando sobre o fundo opaco de tudo. O brilho da certeza, tão profunda quanto o abismo que eu havia experienciado pouco antes. Ela sabia. A sacerdotisa sabia; mas minha irmã apenas me abraçou.




— Vatypetro não existe mais. — Ela disse enquanto ainda nos meus braços e enlaçada em minha cintura. Tento me desvencilhar, mas ela não permite. — Calma! Calma… Está tudo… bem. — A hesitação quase me faz duvidar. — Vamos caminhar um pouco. Você precisa entender o que está acontecendo.

Eu puxei o rosto dela na frente do meu para fazer a pergunta. Ela parecia ter encolhido desde a última vez que a vi, e mais ainda entre minhas mãos. Minha visão tremeu hesitante, mas ela me salvou:

— A mãe está bem, Hyron. — Respiro aliviado, mas a sensação era a de que tudo o que havia, além de Nim e eu, eram cinzas.

Caminhamos ao lado do silêncio e sobre a tristeza em forma de pó. Naquela parca luz difusa eu me questionava se era dia. O cinza tornando tudo tão naturalmente soturno. Estávamos um pouco distantes de Vatypetro, em vez de descer a colina à nossa direita e ir em direção ao canal portuário ao norte, para alcançar a vila, estávamos subindo, indo na direção do Monte Ida [mapa]. Sobre o Monte seria possível ver o mar, que começou a se tornar um mistério e um objetivo para mim, assim que, alguns anos antes, Nim trouxera até mim um pergaminho em couro contendo a cópia de um hino à Deusa, personificada por Inanna, escrito por Enheduanna, uma sacerdotisa acadiana, juntamente com uma gravura representando sete mares. Ela estava totalmente emocionada com o conteúdo provavelmente milenar do texto, com uma tradução da escrita suméria para a escrita egípcia, que era o que conseguíamos ler, e eu me interessei totalmente pela possibilidade do inexplorado daqueles mares. Era meu pai que em suas viagens sempre trazia pergaminhos e tabuletas com todo o tipo de informação que ia desde receitas culinárias a diários sazonais de uma região. Esses textos eram vendidos para o Arquivário de Knossos, mas a curiosidade de Nim e, principalmente a minha, fazia com que fossemos os primeiros a ter acesso aos textos. Quando inquiri meu pai acerca desses mares, ele me apontou com o dedo, dizendo ter navegado por dois deles; mas ele também disse que acreditava haver bem mais do que a gravura mostrava, e que eu entenderia quando eu estivesse em alto-mar e sentisse o que se sente quando não há nada mais para se contemplar em todas as direções a não ser água salgada. Eu pensava em meu pai estando lá em algum lugar daquela vastidão, e que eu deveria estar lá com ele; entretanto, com a mão direita em meu ombro, ele havia me mandado caçar os chacais.

— Antes de partires para o Santuário de Dikte há algumas noites atrás, eu estive no Santuário de Iouktas para a preparação e realização dos rituais da Lua Nova. Então, na noite após o rito formal, todas as sacerdotisas tiveram… sonhos… — ela me olha com o canto do olho.

— Sonhos…?

— Sim. Ehlay sonhou que foi gentilmente tomada pelas mãos por outras sacerdotisas, levada até a costa norte e enterrada na areia da praia até o pescoço, voltada para o mar. As sacerdotisas correram e gritaram por sobre os ombros delas que o ritual tinha que continuar, ao mesmo tempo em que ela observava impotente uma vaga gigante se aproximar da costa e, ao lado dela, simplesmente surgia em sua visão como se sempre tivesse estado ali, um homem apoiado em um cajado, vestindo uma toga muito branca, manipulando um colar de contas negras na mão esquerda ao voltar um sorriso triste e discreto para ela. Não consigo descrever o terror que vi nos olhos dela enquanto ela contava o sonho para as outras sacerdotisas afirmando que a impressão havia sido tão real quando a vaga a atingiu e ela não conseguiu acordar.

— Manasa contou seu sonho abraçando a si própria, com os olhos arregalados olhando para o nada. Ela sonhou com um homem que vagava torpe em uma cidade em que era dia mesmo enquanto noite; mas ele não podia ver isso, ela disse. Ela também disse que havia uma presença velada por traz do sonho, algo sem substância, mas ainda sim totalmente nefasta, observando todos os acontecimentos, esperando um único. Ela se sentiu oprimida e amaldiçoada apenas por tomar conhecimento da existência de algo assim; mas como presa em uma teia, não conseguia acordar.

— Esi sonhou com uma grande montanha viva. Ela viu a grande montanha ser enganada por um ancião com a vivacidade de um jovem; ou talvez fosse um jovem com uma experiência cuja soma não está ligada ao tempo. Ela disse que o sonho foi muito confuso, fora da ordem dos acontecimentos, como se o próprio tempo estivesse sendo afetado pelos eventos. Esi disse que havia um conhecimento implícito na sua função de expectadora no sonho: o puro medo engendrando aquilo que mais se teme. A montanha viva colapsou sob uma massiva tempestade de raios e atirou-se a si própria em todas as direções na tentativa de deixar algum legado, mesmo que fosse a pura destruição.

— Erinys sonhou que estava presente em um conciliábulo de guerra, disposta entre homens e mulheres ao redor de uma mesa redonda de pedra polida em que repousava um grande mapa representando Creta e todas as terras conhecidas ao redor. Um anel de ouro girava sobre o mapa, continuamente, e de maneira espontânea próximo a Creta, sobre a ilha de Thera. As bordas do anel tocavam precisamente a orla desenhada no mapa com o formato circular da ilha. Alguns homens sorriram, outros olharam com indiferença, enquanto outras mulheres recuaram vários passos com sombras sobre seus rostos, afastando-se do foco da cena. O anel lentamente foi mudando de cor e tornando-se rubro-incandescente enquanto girava. Quando o mapa começou a se deteriorar em uma mancha escura sob o calor, o anel explodiu danificando um pedaço do mapa sob Thera, e os fragmentos incandescentes do anel projetaram-se para atingir no peito um dos homens com feições características das terras do Egito. Com os fragmentos incandescentes incrustrados no peito o homem gritava pragas enquanto sangue escorria de sua boca sobre o mapa, tingindo o Nilo de vermelho. Homens disputaram com suas cabeças, ombro a ombro e com os braços atrás das costas como se estivessem amarrados, para terem a chance de pousarem a testa sobre a demarcação do Egito no mapa. Sobre suas testas haviam marcas com nomes de diferentes deuses; mas não foi isso que chamou a atenção de Erinys. Um homem saiu de trás de toda a confusão e através dela, como se nada importasse, alcançou o mapa e rasgou a demarcação de Creta de lá. Ele simplesmente virou as costas e começou a se distanciar do foco da cena com o fragmento em sua mão. Mas antes de desvanecer ele parou de costas, olhou por cima do ombro, sorriu e quase que imediatamente mudou para um semblante de puro terror, mortificado, quando viu algo que não estava no… … …

— Nim! Como foi o teu sonho? — Interrompo. Ela disse que eu precisava entender. E eu achei estar começando.

— Bem, todos os sonhos foram transcritos no diário do templo e…

— Nim! — Eu obstruo o caminho dela.

Ela me encara em silêncio por algum tempo antes de responder com um sussurro aveludado, como se isso impedisse que ela realizasse a experiência para si própria.

— Sonhei que eu estava desperta… desperta na escuridão…


“Não deve prometer andar na escuridão aquele que não viu o anoitecer.”
[TOLKIEN, John]



Tenebrista Caravaggio: Michelangelo Merisi, nascido em Milão na Itália em 1571. Mais conhecido como Caravaggio, por sua família ser originária da aldeia Caravaggio. Foi considerado o primeiro grande representante da arte barroca e ficou conhecido por seu estilo tenebrista, ao utilizar uma técnica chamada chiaroscuro (claro–escuro), luz e cor no rosto de seus personagens em primeiro plano, sobre um fundo escuro, trazendo um ar deveras sombrio e dramático às suas obras. O tema religioso compunha a maior parte de suas obras, mas muitas vezes acabava por ferir a sensibilidade de seus clientes ao usar pessoas comuns das ruas de Roma, à margem da sociedade, como modelos para pintar cenas e personagens bíblicos e mitológicos; em geral comerciantes, prostitutas, marinheiros e mendigos, porém, que tivessem grande expressividade, como retratado em suas obras. De personalidade irascível, essa era uma atitude deliberada para provocar a nobreza da época. Sua intenção era chocar, e mostrar a vida como ela realmente é, com os medos, angústias e agonias que nos cercam. Sua pintura foi revolucionária para a época, fazendo oposição consciente ao Renascimento. Em 1606 Caravaggio matou um jovem durante uma briga e teve que fugir de Roma para onde nunca mais voltou até sua morte. Sua vida conturbada e sua personalidade controversa, devem ser a razão para o surgimento de tantas histórias a seu respeito. Uma delas, a mais recente, diz que Caravaggio, que morreu aos 38 anos, teria sido assassinado e seu corpo lançado ao mar por membros da Ordem dos Cavaleiros de Malta, organização católica fundada nas Cruzadas. Essa versão é sustentada pelo historiador de arte e especialista na obra de Michelangelo Merisi, Vincenzo Pacelli, na obra intitulada Caravaggio – entre a Arte e a Ciência. A prova estaria registrada em documentos secretos do Vaticano, que teria aprovado a execução, e o crime seria uma revanche.


Caravaggio: David com a Cabeça de Golias


Enheduanna: Pode ser traduzido como Alta Sacerdotisa esposa de Nanna (deus da lua). Foi uma Princesa Acadiana e poetiza entre 2.285-2.250 a.C. É a primeira pessoa a ter seu nome reconhecido como autora em toda a história datada. Foi elevada ao posto de Alta Sacerdotisa por seu pai Sargon da Acádia (também conhecido com Sargon, o grande), que reinou na Mesopotâmia entre 2.334-2.279 a.C., o primeiro rei a governar um império unindo a Suméria e a Acádia. Não há certeza se ela realmente tinha laços sanguíneos com Sargon, ou se ela carregava um título figurativo, porém, Sargon depositou grande confiança em Enheduanna ao nomeá-la Alta Sacerdotisa do templo mais importante da Suméria, encarregando-a com a responsabilidade de promover o sincretismo entre os deuses sumérios e acadianos, para trazer estabilidade ao império e fazê-lo prosperar. Seus trabalhos mais conhecidos são os hinos: Inninsagurra (A Nobre Senhora), Ninmesarra (A Exaltação de Inanna) e Inninmehusa (Deusa de Temíveis Poderes). Além disso ainda tem-se registrado quarenta e dois poemas que abordam frustrações e esperanças, sua devoção religiosa, sensibilidade à guerra e sentimentos sobre o mundo que a cercava. No sítio de escavação de Ur (sul do Iraque), em 1927, o arqueólogo britânico Sir Leonard Wooley encontrou um disco de inscrições feito de calcita contendo três inscrições identificando quatro figuras: Enheduanna, seu Gerente de Posses Adda, seu estilista de cabelo Ilum Palilis e seu escriba Sagadu. A figura de Enheduanna é colocada de forma destacada no disco, enfatizando sua importância em relação aos outros e, ainda mais, a sua posição de grande poder e influência sobre a cultura de seu tempo. A inscrição a descreve assim: “Enheduanna, zirru-sacerdotisa, esposa do deus Nanna, filha de Sargon, rei do mundo, no templo da deusa Innana.”


Thera: Atualmente chamada de Santorini, é uma ilha no sul do mar Egeu, a cerca de 135 quilômetros ao norte de Creta.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Admirável Mundo Novo… (Parte XVI) — A História de Órion… (Parte VIII) — A Queda…

— E essa foi a paz que vivi. Essa foi a minha juventude. Eu contei isso tudo dessa maneira, pois eu queria que entendesses o que Creta um dia foi para mim… Enquanto estive lá embaixo, esse tesouro que foi roubado com a minha juventude jamais retornou… — Órion continuou a sua História e falava de si como se falasse de outrem, talvez até quase espantado com a sua própria narrativa. E esse não é o segredo para tudo o que é feito de Alma e Coração? Quando menos percebi, meus sentidos eram lepidamente corrompidos pelo olor salgado e pela grama macia de Vathypetro; Órion continuou a sua Juventude e falava de si como se falasse da História da Humanidade:

“Tudo teve início quando os chacais começaram a atacar as fazendas apenas durante as noites; ataques separados por distâncias impossíveis em noites consecutivas: fazendas do Oeste eram atacadas numa noite, e na noite seguinte fazendas do Leste eram atacadas. Cogitou-se a possibilidade da existência de mais de um bando, porém nada mais do que sombras e olhos brilhantes foram vistos por algum tempo…

Nim, no meio de uma noite, foi até o meu quarto. Mesmo eu, o caçador do sono mais leve, só a percebo quando pula para dentro dos meus lençóis:

— Meus sonhos me mostram a ti, Hyron… — disse ela sem rodeios e se enroscando toda no meu corpo. — Meus sonhos me mostram que a morte te espreita, que os montes têm olhos e que uma paciência secular grita, no silêncio descuidado das mentes, a sua obsessão… — a voz dela perdendo a força, cada vez menos audível. — Como se houvesse uma teia… em todas as direções, e não tem fim… ela avança na tua direção… meu… irmão… — ela é roubada para o mundo dos sonhos novamente. Como se tivesse sido um esforço enorme ter conseguido aquelas palavras com alguma coerência.



Durante o dia eu reunia informações de quando e onde ocorreram os ataques… eu tentava divisar algum padrão. Quando anoitecia eu já estava armado, e no entorno da residência eu encarava a escuridão com Syrius e Maera por algum tempo. Então eu acendia os archotes e por um instante eu via aqueles olhos brilhantes que eu pensava existir só em minha mente, já que os cães não davam alarme algum.

Eu comecei a vagar pela ilha sem destino… eu regressei a todos os pontos de ataques, eu voltei ao monte Dikte, eu adentrei fundo em Psychro, enfrentei os ventos gelados das Montanhas Brancas e varri a ilha de volta para o extremo Leste até Zakros sem encontrar qualquer coisa. [mapa]

Durante as noites meus companheiros fiéis: Syrius, Maera e o Silêncio fitavam comigo o mar longínquo, e eu pensava no Mundo; não… eu apenas adivinhava o Mundo! E eu só precisava fazer uma coisa… Eu sonhava com muralhas feitas de dentes e olhos brilhantes de chacais quando eu dormia.

Quando eu já não tinha mais conta do tempo em que eu estava fora de Vathypetro, e não muito longe dali, Nim, e seu dom de me encontrar, veio até mim. Ela tinha um sorriso discreto e branco e um olhar expansivo e negro; ela me abraçou e disse ao ouvido:

— O pai quer ver-te…

Ela me deu a mão e caminhamos em silêncio puxando os cavalos pelas rédeas, acompanhados por Syrius e Maera em direção a Vathypetro.



— Noto que passas por alguma dificuldade… e de que adianta a guerra declarada se não vês o inimigo! Ficaste sabendo do ataque desta noite em Lebena? [mapa] — meu pai não me dá tempo de resposta. — Hyron… estou indo resolver negócios em Thera e depois irei ao Egito. Bem… eu só queria mesmo te ver antes de partir. Eu confio em ti, mas toma cuidado e mantenha-te atento! Há muita coisa estranha em torno disso tudo. E quando saíres nas noites, nunca deixe de levar Syrius e Maera contigo. Estás pronto para sair em expedição conosco, portanto não permaneças obcecado na caça… simplesmente alguém tem de resolver isso. Como eu disse antes, eu confio em ti! — O peso da responsabilidade da mão de meu pai em meu ombro esquerdo era grande e a confiança que ele repousava suavemente em mim uniam-se e transformavam-se em força; ele sabia.



Meu pai partiu com meus irmãos e a comitiva toda nos dois navios, e eu dormi em casa naquela noite. E sem saber se foi sonho ou não… — eu estava exausto e minha cama foi uma benção. — Nim com as vestes ritualísticas de Sacerdotisa, os seios desnudos e um sopro na fala:

— Daqui a três dias vai ao Santuário de Dikte ao anoitecer… — ela me sela uma beijo nos lábios e sinto o gosto do mel por um instante, porém não era a minha irmã; eu havia sido convocado por uma sacerdotisa da Deusa.

Eu não a vi nesses três dias em que permaneci em Vathypetro…



Com as Montanhas Brancas às minhas costas, banhadas pelo carmim do crepúsculo, eu cavalguei, seguido pelos meus companheiros caninos, cruzando o vale até o Santuário de Dikte. Uma hora e meia depois a noite abraçava suavemente a ilha trazendo frescor. Uma hora e meia depois eu encarava os portões fechados de Kato Syme. Nenhuma tocha acesa fora ou dentro e apenas a lua minguante impedia a total escuridão. Não havia ninguém lá. Eu fiquei encarando a edificação como se isso fosse me dar alguma resposta. Estive prestes a erguer a voz e chamar por minha irmã, mas um senso apurado de qualquer coisa me calou. Deixei os cães cuidando do cavalo e contornei o Santuário para ter certeza de ninguém estar lá mesmo. Lentamente eu avancei até o pátio que ficava nos fundos do Santuário, tentando divisar os contornos das coisas do que eram sombras, tentando entender se o que eu via: a silhueta de uma pessoa sentada na orla do pátio e a silhueta de um cão correspondiam à realidade. Dei tempo aos meus olhos de se acostumarem para desvanecer a ilusão, mas às vezes a imaginação é insistente, mas às vezes a imaginação é a imagem da própria realidade. Eu me aproximei lentamente, deixando-me notar para não assustar quem estivesse ali. Os contornos tornando-se mais definidos com o aumento da proximidade; nem a pessoa nem o cão se dão o trabalho de olhar na minha direção. Era um homem afinal; o interpelei:

— Quem és… … … — Descubro que o cão é um chacal.

O animal se refestelava com voracidade numa tigela, e o homem contemplava de perto a cena toda.

— O meu nome é Asclepius. — Disse sem se voltar para mim, e a minha melhor reação foi nenhuma. — Senta-te aqui ao meu lado… prometo que não mordo… — Enfim tornou-se para mim com um sorrisinho ligeiro no canto da boca. — Mas claramente é de minha companhia que receias os dentes.

— … — A minha resposta mais criativa! Eu estava em choque. Eu atravessei a ilha toda atrás daqueles chacais, e aquele homem senta-se ao lado de um enquanto o alimenta!? Na minha mente eu sacava a espada e partia o animal ao meio, mas alguma coisa me impedia o culminar da ação.

— Eu sei o porquê de estares aqui… mas a grande questão é: Tu sabes?

Como se uma corda invisível em torno de mim se afrouxasse:

— Foste tu! Trouxeste estas pragas para a ilha!

— Desde que vagar se tornou o teu destino… achas que agora encontraste o que tanto procura? Eu não estou falando de vagar pela ilha! Não és tu o jovem que vaga com a mente?… criando teus próprios mistérios, tornando-te um instrumento do destino na mão de oráculos e criando teu próprio abismo de dúvidas! Tu vais afundar nele deste jeito, rapaz, mais cedo ou mais tarde…

— E quem és tu para me dizeres essas coisas com esse ar professoral, apenas aumentando o meu abismo de dúvidas? — escorrego a minha mão irônica gentilmente ao cabo da espada de bronze. — Diga! Quem és tu de verdade? E por que trouxeste estas feras para a ilha?

— Ora, a juventude não tem paciência nenhuma… nunca!

Ele estava enganado. Ele tinha aquela aparência pacífica de quem viveu para o estudo, e o ar professoral era algo intrínseco a ele, apesar de eu estar querendo golpeá-lo com a minha espada; ele e aquele chacal. Não eram os cabelos e a barba perfeitamente encaracolados, não eram os olhos de uma profundidade quase tediosa, ou a sua túnica muito branca e muito bem alinhada que me impediam de atacá-lo… Não se ataca um completo desconhecido! E eu só precisava saber quem ele era de verdade… Paciência era a única coisa que eu tinha de verdade! E logo eu teria um colete de pele de chacal… e um pouco de vingança. Foi o que pensei no momento.

— Eu os tirei de um navio fenício. Maltratados quase à beira da morte. Não sei porque exatamente o fiz, mas não estava certo aquilo. Eram apenas animais não entendendo o motivo de seu próprio sofrimento. Eu sou médico e qualquer tipo de sofrimento, sobretudo o imposto, se tornou um inimigo declarado… — Dessa maneira ele falou sinceramente comigo. — …mas obviamente eu fui movido pelo impulso.

— E de onde tu vens?

— Venho da cidade de Naukratis no Egito.

O animal terminou de lamber o fundo da tigela e ainda lambendo os bigodes voltou dois olhos vidrados para mim… sim, duas esferas de vidro como se houvesse alguma chama própria em seu interior. Depois, como se nunca tivesse visto o mundo antes, perscrutava com os olhos na escuridão, movendo a cabeça muito rápido em todas a direções, como se estivesse sobressaltado e curioso por tudo, como se tudo roubasse a sua atenção ao mesmo tempo. Asclepius produziu um som sibilante, levou a mão com a palma voltada para cima e o punho cerrado sobre a tigela e fez que ia colocar alguma coisa lá, mas girou o pulso levantando o indicador e o balançando negativamente frente ao focinho do animal. Eu permaneci em pé observando tudo de perto; perto demais…

— Tu sabes que os chacais mataram uma criança e muito provavelmente o pai dela, cujo corpo nunca foi encontrado! Fora todo o prejuízo e a carnificina de outros animais! E tu acabaste de afirmar que eles são teu séquito… Acabaste de afirmar a tua culpa! Onde estava a tua repulsa pelo sofrimento?

— Eu não me isento da culpa; mas tu desconheces as circunstâncias! Sou culpado desde que os resgatei, os curei e alimentei… Entretanto a questão não é esta; a questão é: como vais matá-los?

— Achas que podes me impedir?

— Hyron!… Mata-os! É o que eu quero! Apenas tu! Não chama os cães senão eu os mato!

— Que tipo de brincadeira é ess… … …? — Eu saquei a espada e ia esfregá-la na cara dele, mas Asclepius, que antes estava sentado, já estava atrás de mim segurando meu rosto com a mão esquerda e um cajado rústico de carvalho defronte meu rosto com a direita. Abriu-se uma tampa da ponta do cajado e de lá saiu uma cobra verde a me lamber a cara. O chacal não se moveu; e eu também não…

— Tu não queres matar os chacais? Então, rapaz… é isto que está acontecendo! — Ele falou ao meu ouvido, sibilando. Eu senti uma força terrível, como se eu estivesse preso nos braços pétreos de uma estátua. No instante seguinte, muito rapidamente, não havia mais nada me prendendo e Asclepius se afastou pelas minhas costas. Quando virei, ele já estava longe e de costas para mim. Sentou-se novamente na orla do pátio e, com um estalo duplo na língua, chamou os chacais. E eles vieram…

Surgiam de todas as direções os quatro outros chacais, cercando-me. Eu estava fervendo de raiva pois não estava entendendo nada. Pensei em chamar os cães, mas Asclepius pareceu bastante convincente. Assim sendo, ele bateu palmas de longe e disse:

— Muito bem Hyron, é contigo! — estranho foi que aquilo ara coisa que meu pai dizia! E as tochas ao redor do pátio se acenderam por magia.

O chacal que estava bem na minha frente desde o começo armou-se e saltou na minha garganta. Fiz lhe engolir a minha espada até a guarda. Os outros quatro que chegaram depois investiram todos juntos e não tive tempo de fazer muita coisa; eles estavam muito perto. Cruzei dois golpes de espada nos que investiram pela frente, mas eles esquivaram. Chutei com a sola do pé o focinho de um dos que vieram por trás, mas o outro enterrou os dentes no meu tornozelo direito. Golpeei-o no meio das costas, com muita força, dividindo-o em dois; mas o desgraçado continuou me mordendo. Nesse pequeno instante o chacal que havia levado o chute conseguiu alcançar meu outro tornozelo e imediatamente os outros dois que estavam bem de frente para mim avançaram rapidamente com as bocarras abertas. Consegui acertar um golpe nos dois, cruzando a espada lateralmente e decepando-lhes os maxilares inferiores antes que eu caísse no chão. Os chacais sem a maxila saltaram sobre mim e o único chacal que ainda estava inteiro largou o meu tornozelo e avançou na minha cara. Empurrando os outros dois animais ofereci o braço esquerdo de sacrifício; ele mordeu e eu estoquei a espada em seu coração. O meio-chacal roeu tanto meu tornozelo que eu o sentia raspar os dentes no osso de minha canela; enfiei-lhe a ponta da espada na cervical, desconectando-a da cabeça. Ele caiu. Nisso, o primeiro chacal que sentiu o gosto do bronze da minha espada levantou-se cambaleante, decerto querendo mais ao caminhar trôpego na minha direção, e eu quase não acreditei naquilo. Os outros dois, mesmo sem poder, tentavam absurda e instintivamente me morder, mas só conseguiam cortes superficiais e arranhões; segurei um de cada vez pelas orelhas e fiz a espada abrir caminho pelas costelas até o coração. Tentei levantar-me, mas não consegui, e de joelhos esperei que o último chacal entrasse no alcance da espada; tive de dar três golpes em sua cabeça para enfim tombá-lo. Assim, caí para o lado, virado para Asclepius e o que vi sob as luzes ardentes dos archotes foi uma estátua de mármore com olhos de chacal; não, os chacais é que tinham os olhos dele. A dor corrompia a minha consciência e eu pedi: “Nim… ajuda-me!”. E eu afundei num abismo escuro… “…mais cedo ou mais trade…”, a voz de Asclepius dizia. Mas antes de afundar mesmo, ouvi um barulho terrível como se fosse o urro da Terra. E a terra tremeu… e foi aberta, envolvendo-me numa queda eterna… Sim, acho que foi aí que comecei a cair de verdade…



“Quem luta com monstros deve velar para não se tornar um monstro. E se tu olhares demoradamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.”
[NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal, § 146.]

domingo, 10 de outubro de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte XV) — A História de Órion… (Parte VII) — O Caçador Menino…

— Vê! Eles vieram de Damaskus na Syria. Eu conheci um adestrador excêntrico, um tanto quanto místico demais, porém eu vi os seus métodos em prática e realmente funcionam! E vê! Esses cães mais parecem lobos!!!

— Bom, eu só conheço lobos por gravuras, mas se dizes…

— Hyron, eu sei. Estás pronto para partir com a expedição. Mas eu quero que faças uma coisa antes.

O jovem Órion, então, sorriu largamente apenas com um lado da boca:

— Caçar os malditos chacais!

Mikos não conteve uma boa gargalhada:

— Que ótimo que estás animado! Escolhe dois deles; um macho e uma fêmea, para que procriem.

— Syrius e Maera — disse apontando entre os vários cães, batizando-os. — Eles me escolheram! — sorriu ao pai. — Mas por que disseste que tal adestrador era excêntrico… e místico?

— Porque os cães vão te obedecer fielmente e intuitivamente… desde que carregues isto contigo! — Mikos deposita um saquinho de couro macio na palma da mão de seu filho.

— E o que há dentro disto?

— O adestrador não disse. Mas disse para que não seja aberto em hipótese alguma! — Mikos fez uma cara de divertimento estranha e depois de alguns instantes soltou os cães de suas respectivas jaulas.

Syrius sentou-se à direita do jovem Órion, e Maera à esquerda. Ele abaixou-se enlaçando ambos com os braços e acariciando-os esquivou das tentativas de o lamberem no rosto. Então correu como se criança ainda fosse, e de longe se virou com os cães latindo de excitação na corrida:

— Obrigado, meu pai!

Mikos permaneceu no meio do tempo, no meio da história, no meio daquela tarde ensolarada de uma ilha repleta de peculiaridades… Um escudo de bronze brilhava em sua mão numa ilha repleta de mistérios… Um escudo com marcas de dentes terríveis.



O que será que um pai pensa ao mandar um filho para a morte? Através dessa criação imaginética que Órion me proporcionava de seu passado, eu me agarrava em alguma cognição com receio de me perder em um tempo que jamais me pertencera. Pois eu não estava também sob aquele sol? Ah, poderosa mente vampiresca! Pedi secretamente que Rodin me fizesse estátua novamente. E Órion, quase rindo do meu vacilo, apenas continuou a sua história… … …



“Modelar uma estátua e dar-lhe vida é belo; modelar uma inteligência e dar-lhe verdade é sublime.”
[HUGO, Victor.]

domingo, 19 de setembro de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte XIV) — A História de Órion… (Parte VI) — Diálogo do Absurdo…

Ligeiramente hesitante em pisar a face de Diana, uma vontade quase autônoma me mantinha sem esforço algum a milímetros do solo; apenas uma languidez me puxava para baixo, — e talvez eu apenas esteja rebatizando a baixa gravidade… — eu poderia muito bem ser um bailarino impossível, com a ponta dos meus pés quase tocando o solo. Ao lado de Órion, então, eu nivelo meus ombros aos dele. Ele torna apenas a face para mim:

— Um encontro providencial das Trevas? Um encontro das Trevas… providencial? — …e às vezes nós temos expressões que os humanos desconhecem… — Às vezes me ocorre ser um erro confiar tais segredos a ti. Mas segredos são coisas dúbias na sua própria natureza, e querem tanto ser escondidos quanto descobertos… Saiba… acho incrível tu adorares a Deusa do Silêncio e ter uma mente e, principalmente, um coração que grita! Tu carregas a Natureza do Absurdo, Endímion…

— Ora, há quanto tempo não tenho tantas palavras bonitas comigo… Agora, se tem algo que nos conecta, certamente, é o sangue! Mas só nós mesmos sabemos o que a solidão é capaz de fazer conosco. Quero dizer… há tantas maneiras de ser forte… assim como de ser fraco… Talvez a nossa capacidade de sobreviver seja a nossa força mais absurda, enquanto que quantos de nós resguardamos uma humanidade quase incompatível com as nossas necessidades imortais; definitivamente nossa fraqueza! Somos todos Absurdos, Órion! Aposto que tu sequer sabes quanto tempo tem passado desde que fizeste destes abismos de escuridão eterna a tua morada… E se eu dissesse a ti que mais cedo ou mais tarde, mesmo que nossos milênios e nossos absurdos não possam mais ser contados, o Sol virá devorar a Terra e a Lua e o que estiver no caminho… Uma Estrela Vermelha Gigante! — eu gargalho no vácuo. — Onde está a Eternidade? O que é a Eternidade, Órion? E então tu utilizas a palavra providencial e a põe em interrogativa a mim!? Ah! Eu amo e odeio esse nosso mundo feérico… e às vezes eu não sei mais o que fazer!!! Que tenho eu além do agora? …de verdade! Diga-me!

— Toda a tua efusão é um deleite absurdo… Não seria uma fraqueza não teres medo disso? Demasiado humano; e tu não temes também? Tu és um prodígio, mas por que foges de tudo? Isso não te faz apenas um moleque? Toda essa tua altivez principesca de um mundo feérico do mal não te salva? Por que acho que tu criaste uma moral mais do que absurda para ti mesmo!?

Absurdo!, pois isso não existe! O que existe é a vontade! Absurdo!, pois essa vontade me aproxima e me afasta de tudo! Preciso tanto de companhia, como de solidão! Providencial… … … na minha mais completa solidão… esbarrar com um gigante milenar… acreditando que estaremos aqui para sempre… acreditando por acreditar… acreditando, por vezes, que nosso agora está 3.500 anos daqui.

Órion afinou os olhos, escondendo-os sob as espessas sobrancelhas, e continuou:

— …então meu pai disse: “Hyron! Eu quero que venhas comigo…”



“Parece um absurdo, e no entanto é a exata verdade, que, se toda a realidade for vazia, não haverá mais nada de real nem de substancial no mundo além das ilusões.”
[LEOPARDI, Giacomo. Zibaldone.]

“O homem é absurdo por aquilo que busca, grande por aquilo que encontra.”
[VALÉRY, Paul A.]

“O tempo em si é um absurdo: só existe tempo para um ser que sente. E o mesmo acontece em relação ao espaço.”
[NIETZSCHE, Friedrich W. O Livro do Filósofo.]

“Um sentimental é um homem que a tudo dá um valor absurdo e que não faz a mínima ideia do preço do que quer que seja.”
[WILDE, Oscar.]

“O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites.”
[CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo.]

“A solidão mostra o original, a beleza ousada e surpreendente, a poesia. Mas a solidão também mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito.”
[MANN, Thomas. Morte em Veneza.]

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte XIII) — A História de Órion… (Parte V) — As Abelhas do Conhecimento e O Mistério do Monte Dikte…

Órion levantou-se; uma montanha sobre os mares lunares. Ele ficou de costas para mim e cruzou os braços como se mergulhasse para dentro de si ponderando as coisas. — É incrível como ganhamos novas perspectivas quando contamos as nossas histórias! — Eu permaneci sentado — heroicamente sentado como se o próprio Rodin tivesse me posto ali — e Órion apenas começou a gerar as suas imagens que fariam chorar os historiadores e arqueólogos, enquanto eu resistia heroicamente a toda e qualquer beleza milenar:

— E foi isso que eu ouvi, palavra por palavra, mas como se elas viessem da superfície e eu estivesse nas profundezas da terra… Por que é que os oráculos devem soar tão ébrios, Nim? — Era a manhã seguinte do ocorrido na caverna.

— Porque senão não seriam oráculos, Hyron! E sim meros conselheiros — ela riu. — Mas, “E um dia A Deusa: será suplantada…”, será que isso tem a ver com esse novo Deus? Eu não deveria te contar isso, mas… — ela baixa o tom de voz — noutro dia eu estava abastecendo o incensário do Santuário de Dikte: Kato Syme [mapa], quando um enxame de abelhas invadiu o santuário. Se foi uma visão dentro de uma visão, eu não sei, mas, as abelhas voaram diretamente para a pira incensária e se imolaram mergulhando o santuário em uma densa fumaça que ardia os olhos como enxofre. Eu fiquei tonta, e o barulho era assustador do zumbido misturado ao crepitar das abelhas no fogo. Então todos correram da fumaça, mas ela estava em todo o lugar, mas eu estava sozinha no santuário, tudo aquilo era insano demais… Uma mulher, uma filha da Deusa, jogava uma pedra envolta em um manto vermelho dentro de uma ampulheta de areia, enquanto a própria Deusa acalentava, em um lugar oculto, uma criança com uma penugem prateada na cabeça. Então a ampulheta de areia fumegou e começou a expulsar pedras rubras, e a Deusa chorou um pranto tão ácido que matou quase todas as plantas onde as lágrimas caíram… Eu acordei sozinha e com uma sensação estranha de arrependimento que não era meu; o incensário ainda queimava algum incenso afogado pelas cinzas, cinzas demais…

— …

— Estão me esperando no Palácio de Knossos! Eu tenho que ir, Hyron. E toma cuidado; eu sei que vais voltar ao Monte Dikte assim que eu me for. — Ela se despede com um beijo na testa dele.

O jovem Órion cavalgou pelos campos até o vale do Monte Dikte na direção da Caverna Psychro. Vestia um colete de couro com tiras paralelas de cobre flexível que corriam do meio das costas passando sobre cada ombro até o peito, braceletes de bronze com revestimento interno de couro, sandálias com perneiras de couro, um kilt de tiras de couro e a sua espada de bronze na cintura. — Uma vestimenta bem avançada para a época. — Mesmo sem o porte gigantesco o jovem era carregado de alguma imponência — ou era apenas a imprudência jovial —, entrando na caverna sem qualquer receio e sem sequer sacar a espada, indo direto ao fundo da caverna, num silêncio completo, um brilho dourado o guiava. Alcançado o objeto: um escudo de bronze, ele deu uma boa olhada ao redor com a sensação de que havia ali algo mais do que sombras e rochas… “Um oráculo? Um Deus?”, ele pensa consigo. Mantendo o silêncio reverente ele saiu da caverna podendo observar à luz a riqueza de detalhes dos entalhes feitos no escudo, e o desenho de um labrys no centro. Havia uma impressão de já tê-lo visto antes, porém, um dos lados do escudo estava sulcado por marcas de dentes, o que o lembrou do ocorrido em Monastiraki.

De tarde, de volta a Vathypetro, o jovem encontra seu pai e seus irmãos de regresso, juntamente com parte da comitiva como de costume.

— Vejo que sair um dia de casa desarmado te deu uma lição melhor do que eu jamais poderia dar-te, meu filho! Estás indo à guerra, ou caçar chacais, Hyron?! — E gargalhou sacudindo os ombros do rapaz. — Nim me contou tudo… — mudando bruscamente para uma expressão séria.

Os irmãos mais velhos se amontoaram para pilheriar com ele, mas também o congratulando por ter salvo Nim.

— Esse escudo não é feito pelos artesãos de Monastiraki? — Mikos, o pai de Órion, apanha e examina de perto o escudo. — Não estás vindo do Monte Dikte? Como…

— Eu sei, pai… O homem que foi atrás dos chacais os seguiu até as Montanhas Brancas… São 130 Km de distância até o Monte Dikte! Se ele tivesse mudado a rota e ido atrás dos chacais até lá, alguém o teria visto por aí, sem considerar que isso é mais que um dia inteiro de caminhada sem descanso. Não faz sentido!

— Hyron! Eu quero que venhas comigo. Eu tenho uma surpresa para ti!

— …!!



“Nós, que somos homens do conhecimento, não conhecemos a nós próprios; somos de nós mesmos desconhecidos; e não sem ter motivo. Nunca nós nos procuramos: como poderia, então, que nos encontrássemos algum dia? Com razão alguém disse: ‘onde estiver o vosso tesouro, lá estará também o vosso coração’. Nosso tesouro está onde se assentam as colméias do nosso conhecimento. Estamos sempre no caminho para elas como animais alados de nascimento e recolhedores do mel do espírito, preocupamo-nos de coração propriamente de uma só coisa — de ‘levar para casa’ algo. No que se refere, por demais, a vida, as denominadas ‘vivências’, quem é que dentre nós se preocupa a sério? Quem tem tempo para se preocupar? Jamais temos prestado bem atenção ‘ao assunto’: ocorre precisamente que não temos ali nosso coração — e nem sequer nossos ouvidos. Mas assim como um homem divinamente distraído e absorto em si mesmo acorda sobressaltado, quando o sino acaba de dar fortemente as doze badaladas do meio-dia, e pergunta a si mesmo: ‘que horas são?’, igualmente nós abrimos às vezes os ouvidos depois de ocorridas as coisas e perguntamos entre admirados e surpresos: ‘o que sucedeu conosco?’ e ainda mais: ‘o que somos nós?’, e depois contamos com atraso as doze badaladas de nossa vivência, de nossa vida, de nosso ser — ah! e nos equivocamos na conta… É que somos fatalmente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos de nos confundir com os outros, e para nós eternamente haverá esta lei: ‘cada qual é para si o mais estranho!; nem quanto a nós mesmos somos de qualquer forma conhecedores’.” *
[NIETZSCHE, Friedrich W. A Genealogia da Moral. "Prefácio. § I"]

* A construção desse texto é uma adaptação minha de duas traduções diferentes. Noto que algumas traduções das obras de Nietzsche acabam dispersando as imagens poéticas do texto original, ou por terem de diferenciar-se entre si devido à proteção por direitos autorais, ou pela inclusão do estilo do tradutor durante a transcrição do original. Infelizmente isso gera certa descontinuidade no fluxo do pensamento e acaba muitas vezes por roubar até uma imediata inteligibilidade do que está sendo dito.



A Deusa: O culto das Deusas, de maneira genérica, associa-se basicamente a três aspectos: psicológico, geofísico e econômico. O aspecto psicológico engloba a veneração dos antepassados pela geração materna — A Grande Mãe —, descobertas datam indícios de 300.000 a.C.. O aspecto geofísico está ligado à veneração pela natureza — a cor vermelha ou ocre, associado ao sangue menstrual e ao poder de dar a vida; a lua; as estrelas; etc. — O aspecto econômico está ligado à produção material: a sobrevivência da comunidade garantida pela abundância proporcionada pela fertilidade da terra.

Eu não deveria: Tudo o que se passava em um templo de culto à Deusa era tido como sigiloso e apenas se referia aos iniciados.

abelhas: Há uma associação com o mito do nascimento de Zeus, em que Melissa, ninfa que havia ensinado os segredos do Mel para as abelhas, também alimentou Zeus juntamente com a ninfa Amalthea. As duas eram filhas de Melissus, lider dos Kouretes, guardiões do infante Zeus. Provavelmente Melissus e Melissa eram mitos antigos da ilha, posto que o mel era uma iguaria, e esses mitos foram incorporados por alguns mitógrafos mais tarde ao mito do nascimento de Zeus. Uma provável origem desses mitos antigos da ilha pode estar ligado ao consumo de mel fermentado que se torna uma substância enteogénica.

labrys: Machado de duas cabeças utilizado no culto à Deusa. No período minóico os labrys eram empunhados apenas pelas sacerdotisas em ritos cerimoniais. De todos os símbolos religiosos da época esse era o mais sagrado. Encontrar um artefato desses nas mãos de uma mulher significaria que ela possuía uma importante posição social. Muitos foram encontrados no sítio de Knossos, alguns maiores que um homem, eram utilizados no sacrifício de touros. Neste ponto torna-se inevitável que eu amplie as diversas associações que derivam do tema do culto à Deusa e as mudanças que sofrem os mitos de deidades femininas com a ascensão dos sistemas patriarcais. No “Vaso de Perseu”, que está em Berlin e data de 570–560 a.C., há a seguinte cena pintada: Hephaestus, como no rito cretense, prontamente abre a cabeça de Zeus para libertar Athena, filha de Metis e Zeus, que havia sido engolida por ele para evitar que fosse destronado por seus descendentes que teria com certa mulher, como profetizado por Prometheus. Sobre o ombro de Hephaestus estava o instrumento que ele usara: o machado de duas cabeças. O instrumento mais comum utilizado por Hephaestus era a marreta de ferreiro de duas cabeças, então este simbolismo do machado é importante. Zeus engolindo a Deusa simboliza a progressiva supressão da crença nas antigas tradições matriarcais, simbolicamente destronando a Deusa, porém, ainda assim permitindo Athena nascer do próprio Zeus, devido à adoração da Deusa ser tão difusa e impossível de ser contida ou erradicada. Então quando associamos o fato de o touro ser um símbolo de Zeus — lembrar do sacrifício dos touros na Creta Minóica —, e o fato de Hephaestus, o deus do ferro, personificar um consorte da Mãe Terra em mitos mais antigos, fica claro o motivo de ter sido usado o Labrys para libertar Athena: uma manutenção do rito nessa transferência simbólica. No Oriente Médio e em outras partes da região, armas similares foram empunhadas por divindades masculinas e de alguma maneira elas se tornam um símbolo do raio (relâmpago e trovão). Exemplos são: o Deus Nórdico Thor e Indra. Zeus também empunhou uma arma de raios que ganhou dos Ciclopes como gratidão por tê-los libertados de Cronos; arma que havia sido escondida por Gaia, a Mãe Terra. Abaixo está um Labrys da era minóica.



Monastiraki: Ver: Admirável Mundo Novo… (Parte X) — A História de Órion… (Parte II) — Mistérios e Mitos Através dos Tempos…

130 Km: As medidas espaciais, de tempo, etc. eram, obviamente, diferentes das nossas medidas correntes e foram adaptadas no texto para facilidade de entendimento.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte XII) — A História de Órion… (Parte IV) — O Oráculo Dançante e A Dança dos Chacais…

O Oráculo dançante: “Há uma Dança que rege os ciclos naturais da Vida e do Tempo… Prestais atenção à sucessão de eventos que vós julgais ser de maior significância em dado momento… Quando A Dança, ela própria, oculta do Tempo a percepção longínqua da real efetividade de qualquer evento… Enquanto reinam O Senhor do Tempo e A Deusa Herdeira da Mãe de toda a Vida, na Era de Ouro, o povo jamais precisou de leis e qualquer imoralidade jamais se fez presente… Mas o Tempo que devora até as pedras pôde ser enganado! A Vida é mais astuta que o Tempo e engendra Deuses e Monstros… A Vida pode muito bem pactuar com a Morte! E um dia A Deusa será suplantada, e o Tempo no Coração dos Homens só quererá devorar a Vida… Um dia Onze serão Um, e esse Um carregará… … …” — a voz é brevemente substituída por um gotejar metálico, e então regressa em caráter de urgência — “…o Puro Espírito do Bebedor poderá andar sobre a Terra novamente se O Caçador quiser um sangue mais nefasto que o seu próprio… Porém, neste exato momento, há uma dança, uma das mais belas e perigosas já realizadas por qualquer dançarina… A Dança dos Chacais!”



Então houve a dissociação e eu não pude fazer nada, o tempo não era o meu… O jovem Órion tentava ser o mais rápido possível naquele terreno irregular e cheio de pedras soltas, enquanto Nim, sob uma chuva de Dittanys, tentava se esquivar e se proteger de um bando de chacais com a cesta das flores que carregava. O céu tornara-se rubro por detrás das Montanhas Brancas, aplicando um filtro dramático à cena que eu apenas pude observar. O cesto de flores foi arrancado das mãos de Nim e estraçalhado por três chacais, enquanto outros dois investiram pelo seu flanco esquerdo com mordidas rasteiras mirando os pés da dançarina que esquivava com uma graça que parecia não condizer com o perigo da situação. Ela olhou rapidamente ao redor buscando os cavalos que, como foram deixados soltos pastando, estavam um pouco longe demais para tentar uma corrida até eles. Ela também procurou por pedras, mas naquela parte gramada não havia nenhuma que pudesse ser usada. “Hyron”, ela gritou quando os chacais deixaram a cesta de flores de lado para terminar de cercá-la. “Hyron, Hyron”, ela gritou e ele despontava descendo a colina próxima, levantando uma poeira avermelhada. Ela rolou para trás sobre suas costas, como uma cambalhota, já estando em pé novamente, assim abrindo uma distância que permitiu que ela virasse as costas para os chacais e corresse. Órion se aproximava, e como estava desarmado por ter saído rapidamente de casa, pegou duas pedras no caminho que cabiam justamente em suas mãos. Nim conseguiu dar três passadas antes que fosse agarrada pela barra da túnica. A túnica cedeu e ela conseguiu dar outras três passadas antes de ser agarrada novamente. Pude ver o detalhe dela apertando fortemente os olhos marejados numa mistura de raiva e desespero enquanto lhe escapava um grito sem forma. Um dos animais saltou acima de sua cintura intencionando pegar um de seus braços, mas ela movimentou-se agilmente, deixando apenas o tecido da parte de baixo da manga curta e a lateral da túnica para a mordida. Nesse exato momento seu irmão pode mirar e acertar com a pedra a cabeça deste mesmo chacal enquanto outro investia novamente contra Nim, agarrando o que sobrara da saia de sua túnica. Como se realmente em uma dança, Nim não se deixava parar em um mesmo lugar nem por um segundo, o que dificultava as investidas dos chacais que tentavam segurá-la como podiam. Órion gastou a ultima pedra na cabeça do animal que se interpunha a sua irmã, e quando o outro chacal arrancou o resto do trapo que ainda vestia a garota, Órion pode avançar pela lateral do animal e chutá-lo na parte mole do ventre, fazendo-o girar no ar três vezes antes de voltar ao chão. Ainda restavam dois chacais que rosnavam ameaçadoramente enquanto o jovem chutava a terra em suas caras e rosnava de volta para eles, mas com três do bando nocauteados, dificilmente tentariam alguma outra investida.

Órion segurava Nim pelo braço, colocando-se um pouco à frente de maneira defensiva, caminhando lentamente de costas na direção dos cavalos que, alertas e bastante agitados, observavam tudo de uma distância segura.

— Estás bem, Nim?! — ele sussurrou sem tirar os olhos dos chacais.

— Estou bem, mas chegaste no último instante! Por que demoraste tanto naquela caverna?! — ainda ofegante e com os olhos vidrados pelo êxtase da adrenalina.

— Eu realmente não tenho essa noção do tempo… Para mim é como se eu tivesse entrado e imediatamente saído daquela caverna! Entretanto eu tenho a lembrança de acontecimentos enquanto eu estava lá dentro… mas são acontecimentos com os quais eu não me identifico, quero dizer… sinto como se não fosse eu naquela caverna… e ainda sim está gravada em minha mente, como em placas de pedra, cada palavra oracular dessa lembrança absurda!

— Veja, Hyron! Estão se levantando…

Eles correram até os cavalos, aqueles resistentes cavalos do oriente que sei muito bem não terem sido vistos mesmo no Egito, naquela época dos primórdios da civilização. E confesso que caí de amores por aquela garota que não dividia sequer o milênio comigo, quando ela, de um salto só, encaixou o animal, negro como a noite, entre suas pernas desnudas. O jovem começou a desatar sua única vestimenta: o seu saiote, para cobri-la ao menos um pouco, mas ela recusou a oferta:

— Deixa, meu querido, no momento mereço sentir a vida no meu corpo sem qualquer coisa que mitigue ou roube meus sentidos…

quarta-feira, 17 de março de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte XI) — A História de Órion… (Parte III) — Colapso da Realidade…

— Às vezes eu tento capturar o momento exato do tempo que me lançou nesse caminho sem volta. O que são as escolhas e o destino na história humana? O que são a história e o destino para nós agora? — Órion olha para o nada como se houvesse algo lá o encarando de volta.

“No fim daquela tarde em que o sol parecia ter se deitado sobre a ilha, as flores recendiam uma doçura tal que talvez apenas Creta conheça. Neste cenário, Nim, minha irmã mais nova, apanhou um cavalo e se dirigiu para o monte Dikte. Eu apenas a segui… [mapa]

“Estávamos no fim do verão, a estação que faz as montanhas distantes bruxulearem como chama sob o sol. Mas naquele fim de tarde uma brisa descia do Monte Dikte ao leste com um vigor refrescante. A única coisa que se ouvia era o esporádico tilintar das correias dos cavalos e o som abafado dos cascos na grama macia sobrepondo o farfalhar de tudo o que soubesse dançar ao vento. Nim olhava solenemente para o monte ao dizer… um murmúrio levado pelo vento:

— Um novo Deus…

— Que dizes, minha irmã?

— …um novo Deus é nascido, ali mesmo, na Caverna Psychro do Monte Dikte. Estamos em uma intersecção de eras! — ela tornou-se grave para mim ao exclamar. — O que nos reserva o Destino, Hyron? — mostrando, então, um sorriso de canto de boca quase que malicioso, instigando o cavalo para que corresse o quanto pudesse.

— Nim era uma das mais jovens e belas Sacerdotisas da Ordem da Deusa com sua atordoante combinação de um semblante passivo e olhos de uma chama negra que pareciam desejar conquistar tudo; a sua vasta cabeleira de fios muito finos castanhos claros trançados até o meio das costas resplandecia ao sol com a sua tiara dourada; e seu corpo atlético de Taureadora dava leveza e agilidade a qualquer movimento que fizesse.

“Na base do monte ensolarado eu admirava a imponência incansável de Dikte, enquanto Nim procurava por Dittanys:

— As chuvas de Outono vieram mais cedo este ano, as Dittanys já devem estar em floração. Vê! — ela disse apontando a direção.

“Então colhemos juntos o silêncio das flores, colhendo nosso próprio silêncio, na percepção do tempo medida pela atenção ao que se faz; o contato com a terra e o perfume das flores parecendo ser as únicas coisas que realmente importam…

Neste ponto Órion foi tragado pelas suas memórias, deliberadamente me arrastando com ele; mas já não havia outro lugar para mim. As imagens que ele esporadicamente me permitia deram lugar a uma dimensão repleta de cheiros e texturas. Definitivamente era como se eu estivesse realmente em Creta; um observador privilegiado. Destarte pude ver perfeitamente o Sol sobre as Montanhas Brancas ao oeste; fui abençoado com isso! Ó trevas… Nim continuou sem precisar emprestar a voz mentalmente projetada de seu irmão, e assim pude perceber que ela era infinitamente mais bela do que a descrição que qualquer irmão poderia dar:

— Hyron, — “ela me rouba da minha introspecção com a voz que só uma sacerdotisa pode ter”, Órion revela — o que pensas haver além de Oceanus?

— Sequer ouso fazer conjecturas, Nim… — O jovem Órion responde com a sinceridade e a simplicidade de seu corção, levando o olhar das Dittanys para Nim.

— Foi por isso que recusaste ingressar na Ordem, não foi?

— Para mim há mais mistério e revelação nas nossas próprias profundezas. Oceanus é uma bela imagem para isso.

— Mas desconfio que te atirarias no abismo, se defronte a ele, apenas na esperança de reunir os seus mistérios.

— E não é isso que fazes tu, cada vez que adentras a arena com teu time de dançarinos para bailar com um touro feroz que carrega a morte em seu dorso? — ela apenas desviou o olhar e calou-se.

Pessoas que se conhecem bem vão muito além das palavras em sua comunicação, e toda a conversa serviu para que Nim dissesse aquilo que não conseguiu. Então o Pequeno Gigante levantou-se e disse:

— Nim… vem! Vamos até Psychro. Aquele novo Deus ainda está lá?

— Ora, nem brinques com isso Hyron; se te interpuseres em uma intersecção de eras decerto que serás esmagado! Mas eu sei que vais fazer disso mais um abismo. Então vai, esperarei aqui, ainda quero colher algumas ervas… mas regressa logo, devemos estar em casa antes de anoitecer.

Órion correu o caminho pedregoso até Psychro, mas por cautela, ou solenidade, caminhou silenciosamente nas proximidades da entrada da caverna. A modesta entrada ocultava uma grandiosa obra de arte esculpida na rocha por águas milenares.



Um gotejar constante atingia uma superfície metálica produzindo um ecoante ritmo litúrgico que me arrebatou e me lançou para dentro da visão e de todos os sentidos daquele rapaz que se tornaria, de alguma forma, um gigante entre gigantes. Eu era Hyron no exato momento em que também era arrebatado e envolto em um manto de êxtase. Pude vislumbrar um escudo de bronze incrivelmente trabalhado em entalhes cheios de detalhes, com um machado de dois gumes no centro do desenho; mas mais um gota e minha realidade entrou em colapso.



a estação: No verão as temperaturas atingem os 40º C.

um novo Deus é nascido: Em uma das muitas versões para o nascimento do mito, Zeus nasceu e foi oculto da voracidade de Cronos na Caverna Psychro do Monte Dikte. Rhea (mãe de Zeus) enganou Cronos (pai de Zeus) dando a ele uma pedra para ser devorada no lugar do pequeno Zeus. Ele foi cuidado pela ninfa Amaltheia e teve como guardião Kouretes, que, trajado de sua completa armadura, dançava e batia sua lança contra seu escudo para que Cronos não ouvisse o choro da criança. Destarte Zeus pode crescer e iniciar a Titanomaquia, que é a história da luta dos Deuses Olímpicos contra os Titãs.

Caverna Psychro: Também conhecida como Caverna Dikteon.

Taureadora: Artefatos datados da Creta Minóica (afrescos, esculturas e pinturas em vasos) fazem menção a uma espécie de dança ritualística esportiva praticada com touros. Provavelmente o ato consistia em enganar o touro desviando de seus ataques com esquivas laterais ou com saltos mortais sobre eles. Outro movimento seria o de apoiar as mãos ou um pé sobre a testa do touro esperando que o animal fizesse aquele movimento característico de uma chifrada (abaixando a cabeça e depois a levantando rapidamente) para que o dançarino fosse lançado para cima em um salto acrobático. Os eventos ocorriam com vários dançarinos ao mesmo tempo na arena. Conjectura-se que esse posto de dançarino apenas fosse concedido aos membros das famílias de maior prestígio da Creta Minóica.


Afresco do Grande Palácio de Knossos


Dittanys: Origanum dictamnus, Dittany de Creta. É um arbusto com flores aromáticas que cresce selvagem apenas nas encostas e desfiladeiros das montanhas da Ilha de Creta. Popularmente simboliza o amor e é dita como afrodisíaca. Era muito comum um corajoso amante se arriscar em tais lugares perigosos para presentear a sua amada com essas flores. Inúmeras mortes foram registradas dos chamados Erondades (perseguidores do amor) através dos séculos. Porém, existem campos de cultivo de Dittanys nos dias de hoje, e a história acima considera que as flores foram colhidas de uma área de cultivo pela facilidade com que foram alcançadas. Atualmente é utilizada para a preparação de medicamentos, temperos, artigos de perfumaria e bebidas como vermute e absinto, além de um chá muito popular em Creta. Alguns filósofos da antiguidade, entre eles: Hipócrates, Aristóteles e Teofrasto, fazem citações a respeito dos efeitos curativos da planta. Algumas práticas de bruxaria, além das poções do amor, a utilizam para adivinhação, projeção astral e contatos com espíritos. Segundo tais práticas, quando a planta é usada na forma de incenso faz com que o espírito se materialize na fumaça.




Oceanus: Mitologia Greco-Romana: Titã irmão de Cronos. Entidade que circundava a Terra com seu Mundo-Oceano. Representa o desconhecido, o inexplorado pelo homem.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte X) — A História de Órion… (Parte II) — Mistérios e Mitos Através dos Tempos…

— Diziam que aqueles chacais haviam sido mandados à Creta, do próprio Egito, por um sacerdote egípcio. Ás vezes eu até ouvia, nas vilas, histórias alegóricas com a imitação de uma sombria voz do sacerdote dizendo: “…e eles devorarão a prosperidade da ilha…”

“Fora as aves de rapina, não havia qualquer outro tipo de animal predador anteriormente na ilha. Por um tempo apenas ouvi que havia animais estranhos vagando a leste das Montanhas Brancas, e então vieram os ataques a animais domésticos nas fazendas de Myxorrouma e Aphodoulou. Foi o senhor de Aphodoulou que identificou os animais como sendo chacais que ele havia visto no Egito em uma de suas viagens. Mas todas as histórias mirabolantes e superstições só vieram depois do que houve em Monastiraki: uma criança foi encontrada sem vida nos limites da vila, com sinais óbvios do que poderia ter causado aquilo. O pai da criança, transtornado e sozinho, saiu amaldiçoando os ‘cães do inferno de Anpu’ com espada e escudo de bronze em punho, a oeste, na direção das Montanhas Brancas. [mapa]

Montanhas Brancas


“Simplesmente nunca mais retornou. Os que foram atrás dele depois, não encontraram nem o homem, nem os chacais. E os passeios sob o luar, que tornava as montanhas de Creta tão brilhantes, nunca mais foram os mesmos…

Monte Dikte


“Meu pai não permitia que eu saísse em viagem com ele; ‘não tem idade ainda’, ele simplesmente dizia. Mas eu estava bastante animado; eu estava com 17 e meu irmão Arat foi ingresso com 18 anos na expedição. Dessa maneira eu me ocupava com as coisas da fazenda, sempre recebi treinamento do manejo da espada, treinos que se intensificaram naqueles últimos anos, minha mãe tinha me ensinado a escrita havia algum tempo, pois era ela quem cuidava de toda a parte administrativa da fazenda, e, a pedido de meu pai, eu estudava cartas náuticas e tratados comerciais. Bom, isso só poderia significar que logo, pela primeira vez, eu deixaria Creta para conhecer o mundo; era assim que eu pensava.”

Nesse momento Órion quis suspirar nostalgicamente, mas nós dois estávamos vazios da matéria. Nós éramos apenas duas mentes unidas em um lugar e em um tempo muito além até mesmo da distância física que nos apartava do mundo. Um lugar e um tempo quase esquecidos pela história humana.

— O senhor de Vathypetro passava longos períodos fora de sua casa, mas, por vezes, também se estabelecia demoradamente. Quando o fazia, ele assumia pessoalmente meus treinos com a espada. Isso era bom, apesar de ser um instrutor exigente, podíamos passar um bom tempo juntos e conversar bastante. “Hyron…”, pois esse era meu nome, o que meu pai havia me dado, “…circunstancialmente, a força bruta não é de essencial importância em uma batalha. Procure se livrar de vícios e cacoetes. Agilidade e uma ação direta são bastante eficientes…”, ele dizia. Naquela época, 17 anos recém completos, eu tinha não mais que um metro e sessenta e cinco de altura, por mais incrível que pareça, distribuídos em 65 quilos. Boa parte dos meus oponentes poderia ser maior que eu; ele queria que eu não me importasse com isso. Às vezes ele organizava pequenas competições amistosas com espadas de madeira entre a tripulação, e meus irmãos e eu também participávamos, assim, eu podia medir minha habilidade, pois, ao menos nos limites do Mediterrâneo, vivia-se uma época de relativa paz. Paz e modo de vida cretense que se tornariam uma utopia nos anos posteriores…


Anpu: Mitologia Egípcia: Referência a Anúbis, deus guardião das tumbas, guia e juiz do submundo, geralmente descrito como um homem com a cabeça de um chacal.

a escrita: A civilização minóica possuía uma língua oficial escrita em um sistema ideo-silábico, isto é, com silabogramas e ideogramas, nomeada de Linear A por Arthur Evans. A escrita minóica permanece incompreendida e a sua língua não aparenta ligação a nenhuma língua conhecida.

modo de vida cretense: A distribuição das riquezas desempenhou um grande papel na estrutura da Creta minóica. Construções de múltiplos cômodos foram descobertas, mesmo em áreas “pobres” da cidade, revelando uma igualdade social entre os habitantes.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Admirável Mundo Novo… (Parte IX) — A História de Órion… (Parte I) — Os Chacais e a Felicidade…

— Eu gostava de, eu mesmo, acender os archotes ao redor da residência. E eu esperava que a noite caísse por completo antes de fazer isso. Por vezes via os chacais espreitando nas sombras com aqueles olhos de vidro amarelo, e era justamente por isso que eu procurava quando fazia aquilo. Sempre achei que eles esperavam que, em alguma noite, ninguém viesse trazer o que para eles também podia parecer vigilantes olhos amarelos. Hoje eu tenho certeza.

— A Ilha de Creta… Órion, és nascido antes de Roma, não… antes mesmo da Grécia!

— … — Suas espessas sobrancelhas levantadas disseram: “Eu sei!”

— Isso foi há uns 3.500 anos…

— …pois parece que foi ontem…

— …

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— A residência ficava a dez quilômetros do Palácio de Knossos e as terras se estendiam do Rio Kairatos até o Monte Dikte. Criávamos ovelhas e um pequeno rebanho bovino, e cultivávamos trigo, cevada e grão–de-bico. Mas nos orgulhávamos de ter um dos mais belos vinhedos da ilha, juntamente com oliveiras e figueiras, açafrão, e também a papoula. A maioria das fazendas não produzia o vinho; era comum que se produzisse nos próprios palácios das cidades. Mas nós não fazíamos vinho; fazíamos uma especiaria.

"Meu pai contava ter salvo a tripulação de um navio fenício naufragando que transportava vinho em barris de cerejeira e carvalho. Ele acabou ficando com o que pode ser salvo do carregamento e, assim, assimilou algumas maneiras orientais de se fazer o vinho. A principal adaptação foi que passamos a utilizar os barris de madeira no lugar das ânforas de barro ou terracota para a fermentação e estocagem, o que apurava distintamente o sabor do vinho. Não passou muito tempo para que recebêssemos o título de melhor vinhedo da ilha; mantendo em segredo, é claro, as nossas maneiras de produção.

"Mas meu pai não era apenas um comerciante, ou fazendeiro. Ele era um mercenário dono de duas embarcações de trinta metros, com mais de trinta homens sob seu comando. Geralmente seus contratos eram de escolta de mercadorias valiosas, mas sei que ele esteve em pequenas guerras, pois destas ele regressava sempre com pessoas para trabalhar nas terras; não escravos! Mas uma mão-de-obra barata que notavelmente trabalhava com uma devoção fora do comum. Meu pai possuía um carisma fora do comum.

"Eu lembro, quando eu era criança, que subia no alto do Monte Dikte para poder enxergar mais longe no mar e talvez ver alguma embarcação, esperando meu pai e a festa que vinha com ele. Levava pouco mais de uma hora à cavalo do Porto de Knossos até Vathypetro, que era a nossa casa. E quando a notícia de que eram os navios do meu pai que estavam aportando, era uma correria de preparativos para a recepção dos mais festeiros mercenários ansiosos para ver suas esposas e filhos.

"Apenas metade da comitiva vinha de imediato com meu pai, a outra ficava no porto para cuidar do desembarque das mercadorias, dos serviços postais, do reporte administrativo junto ao palácio, da manutenção e limpeza dos navios, e dos diversos outros afazeres. Então eles surgiam descendo a colina que antecedia Vathypetro. E vinham cavalgando lentamente, propositadamente, para que tudo estivesse pronto na casa. Meu pai, Mikos, vinha na frente com dois de meus irmãos mais velhos, Arat e Kirali, seguidos pelos outros cavaleiros da comitiva e algumas carroças com suprimentos e especiarias.

"Minha mãe, minha bela mãe Hyelle, com sua túnica branca de tecido fino e esvoaçante, aberta por um decote vincado até o umbigo, as mangas curtas e a saia frisada, acinturada por uma fina corrente de cobre, esperava um pouco afastada da casa, sozinha, com as mãos entrelaçadas e voltadas para cima como se estivesse segurando algo junto ao baixo ventre, mas totalmente relaxada e passiva, como se ela própria fosse a terra para a qual tudo regressa.

"Meu pai, então, saltava do cavalo, entregava as rédeas aos meus irmãos e seguia sozinho pisando gentilmente na grama verde e macia. Todos paravam e fazia-se um silêncio primoroso. Quando ele finalmente alcançava minha mãe, eles enroscavam-se pelos antebraços com firmeza, e não era possível ouvir o que eles diziam um bem de frente ao outro, afinal, aquele era um momento só deles, e o gozavam demoradamente. Quando finalmente se entregavam aos abraços e aos beijos, todos da comitiva gritavam e corriam para os que os aguardavam, a música e o cheiro da bebida e da comida se elevavam no ar; e tudo isso parece com um sonho infantil, e que a felicidade é apenas uma ilha distante de tudo…"


Ilha de Creta: Os mais antigos sinais de habitantes em Creta são peças de cerâmica neolítica de aproximadamente 7.000 a.C. O tempo de 3.500 anos atrás (ou 1.500 a.C.) citado no texto faz menção à Civilização Minóica. Os minóicos foram uma civilização pré-helênica da idade do bronze e sua arte nos diz que eram uma sociedade matriarcal voltada para o culto da Deusa. O termo Minóico foi criado pelo arqueólogo inglês Arthur Evans devido ao rei mítico Minos, associado ao labirinto do minotauro, que Evans identificou como sendo o sítio de Knossos em escavações no ano de 1900. É possível que Minos fosse um termo usado para identificar um governante minóico específico, mas pode também ter sido usado para nomear os governantes minóicos da época, assim como o termo faraó no Egito. Como os minóicos chamavam a si mesmos ninguém sabe, mas a palavra egípcia Keftiu e a semítica Kaftor ou Caphtor e Kaptara nos arquivos de Evans, se referem evidentemente à Creta minóica. Creta possuía um domínio político-comercial do Mediterrâneo Oriental. A prosperidade da ilha se deveu basicamente à habilidade na construção de navios rápidos e resistentes, capazes de transpor o Mar Mediterrâneo. Desta forma, os minóicos estabeleceram relações comerciais com as civilizações circundantes, exportando peças de metal, jóias, cerâmica, azeite, vinhos, assim como importando algum tipo de matéria-prima. A frota minóica era formada por navios de transporte, feitos especificamente para o comércio e se compunha de embarcações que mediam entre 20 e 30 metros, com vela e remos. Em se tratando de navegação, eles tinham perfeitas noções atmosféricas e náuticas e isso se deduz, tanto pela quantidade de mercadorias que transportavam, quanto pelas distâncias que percorriam.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Admirável Mundo Novo… (Parte VIII) — O Despertar do Gigante…

…mas mesmo alguém como eu, com a eternidade como consorte, não tem tempo a perder com desmaios…

Uma pequena batida no solo com a palma da mão foi suficiente para me jogar para cima novamente em pé, estralando os ossos do pescoço totalmente enfurecido; eu sabia…

— Devo parabenizá-lo por me acertar, poucos conseguiram. Mas um ataque pelas costas te rouba um pouco do mérito… só um pouquinho. — Mostrei o meu sorriso que mais parecia uma mordida e um rosnar, ao falar com o Dom da Mente.

…eu sabia que algo havia se aproximado por trás de mim. Eu só não quis acreditar. Eu havia transformado a Lua em um Santuário, em uma Fortaleza sem muros, mas impenetrável; um grande erro. Então eu estava frente a um abençoado com a terrível maldição do Dom das Trevas: um vampiro com quase dois metros e meio de altura coberto com a pele de um leão como se fosse um manto. A juba vasta e dourada adornava seus ombros largos demais, e como se a fera o tivesse abocanhado a cabeça, o semblante da ira leonina o protegia como um elmo. Na cintura, sobre o saiote de tiras de couro, pendia uma espada curta, e as botas de couro macio forradas de pele iam até quase os joelhos. De longe ele me encarava fixamente e eu quase não acreditava em suas proporções.

Ele começou a olhar as próprias mãos e os braços, procurando algo que não estava mais lá, como se a tecedura da realidade tivesse de ser vertida antes de assimilada. Disse em minha mente voltando a olhar para mim:

— Pensas alto demais homenzinho, és sempre tão descuidado assim? — ele riu dentro da minha cabeça. — Deste-me sonhos antes do meu despertar. Vens de um mundo completamente diferente do meu e ainda assim conheces Akasha?! Asclepius te mandou aqui?

— A recepção não é uma de tuas virtudes, certo? Primeiro me atacas pelas costas, depois começa uma conversa e nem ao menos te apresentas?!

Órion é meu nome. — Mas ele projetou o nome em minha mente no alfabeto derivado das antigas línguas indo-européias, o qual existe há mais de 3.000 anos: Ωρίων. — Asclepius… foi ele mesmo?

Eu fiquei calculando a idade dele… pelo que havia dito até então, pela sua força física e estranhas vestimentas. Órion… não havia como não fazer as várias associações com a mitologia. Havia ele se revestido do mito? …ou de alguma forma teria inspirado poetas e mitógrafos pelo mundo? Minha única conclusão sábia fora a que eu deveria evitar um confronto direto com ele. Eu me encontrava em tremenda desvantagem. Eu não sabia o que era pior: ele ser tão antigo quanto Akasha, ou ter sido alimentado com o poder daquele sangue primevo. Porém ele poderia apenas estar usando o que havia roubado de minha mente.

Então ele tentou penetrar em minha mente novamente, mas eu o rechacei com uma imagem: um livro negro se fecha, e o meu nome em vermelho sangue está escrito na capa; eu o atiro em sua cara e ao mesmo tempo faço o livro se incendiar. Ele recuou um passo atrás cobrindo o rosto com a mão esquerda. Eu nunca havia visto isso acontecer antes: uma imagem se misturar com a realidade a ponto de ser tão convincente. Respondi:



— Nunca ouvi esse nome antes.

— Endímion… — um tanto quanto perplexo pelo choque contra a força da imagem. — Como foi que chegaste aqui? De que foges?

— De nada fujo eu! Na verdade eu vim em busca, apesar de que não saiba do quê exatamente… Talvez simplesmente busque: uma nova perspectiva; ou apenas uma nova obsessão…

E assim, estávamos conversando sem palavras ditas, mas projetadas mentalmente como se fossem, com entonação e cadência. Afinal, a noite poderia ser eterna. Era muito fácil esconder-se do Sol na curvatura do pequeno satélite, — ou poeticamente: nas curvas de Diana; mas a força de Apolo era lá dez vezes maior sem a proteção do Manto de Gaia. Continuei:

— Eu vim em busca de um desafio. Por pura luxúria eu vim em busca de uma divindade, de um ideal. Eu vim em busca de minha própria destruição, e eu vim em busca de inspiração, também. Quando enfim cheguei não soube o que fazer, tive vontade de gritar, mas não podia… tudo me pareceu uma grande tolice. Tudo o que encontrei foi o Silêncio, um dos mais completos silêncios que já experimentei. E o Silêncio… na verdade é a minha divindade favorita… e não pode ser outra coisa senão uma divindade feminina que me beija na boca e me cala numa excitação casta, doentia e viciosa. Quase sinto raiva pela provocação, se não a amasse: ela me lambe na face e diz “ama-me” sem quebrar a magia do silêncio. Destarte gritar perdeu o sentido, e eu caí sentado na beira de um abismo, desperdiçando minha noite eterna com pensamentos voláteis como éter, desperdiçando minha eternidade em uma noite eterna que jamais terminaria como eu gostaria: no seio de uma Beleza Suprema, um Ideal Indestrutível, nem que isso fosse um fragmento de uma coisa absurda e incompreendida que ousamos chamar de Verdade. Mobilizar-se em direção a isso que estou dizendo, ou manter qualquer esperança de alcançá-la, por mais inocente que seja, culminará em desespero… e a minha única salvação é dominar a verdadeira mágica de moldar os sentimentos e transformá-los em pura poesia… pois haveria uma outra linguagem para esse desespero? A única verdade é a de que somos capazes de enganarmos a nós mesmos com abandono e sinceridade… E se assim não fosse não haveria a tensão que nos faz sentir vivos: através da paixão, através do amor e através do medo… as nossas ilusões mais triviais entre tantas outras! Destarte engendramos nossa própria condenação e redenção unidas nessa ilusão e única concepção de vida que conhecemos até agora.

Órion, ainda com aquele olhar fixo, como se o próprio leão estivesse caçando em solo lunar. Porém, aquele olhar buscava uma profundidade ao estar, certamente, avaliando a minha força, aglutinando todas as informações possíveis. Por fim disse:

— Endímion! — disse como se fosse o Chamado dos Deuses. — Senta-te comigo à beira de um desses mares áridos e sombrios. Eu vejo uma lacuna em ti, um espaço imenso em que deveria haver alguma coisa, mas estranhamente esta falta te acrescenta.

— E o que acontece quando o Antílope aceita o convite do Leão para jantar? — e enviei-lhe uma imagem do traiçoeiro golpe que me pegara desprevenido.

— Oh, perdoa-me… eu ainda estava em uma espécie de sonho semi-consciente, e aquilo não foi nada além de um reflexo de proteção territorial dos que dormem. Eu não tenho nada contra ti. Devo estar dormindo há muito tempo… não sei que tipo de forças ainda me mantém em pé. Venha! — Ele estendeu-me a mão de longe e sorriu, suavizando aquela severidade natural que as espessas sobrancelhas e os contornos largos e robustos demais dão a um semblante.

Então empurrei gentilmente a gravidade para longe de mim ao erguer-me do solo, e em um milionésimo de segundo estava frente aos dois metros e meio de Órion, pairando na altura de seus olhos que demonstravam um pequeno espanto.

— Certo! — aquiesci. — Mas vais ter de me contar a tua história…


Órion: Mitologia Greco-Romana: Assim como a maioria dos antigos mitos que são cultivados mesmo antes da Grécia Antiga, existe uma quantidade enorme de variações para as narrativas das aventuras de Órion. Uma delas conta que Órion, filho de Poseidon (Deus dos Mares e irmão de Zeus) e Euryale (filha do Rei Minos de Creta), caminhou sobre as águas até a Ilha de Chios, onde se embebedou e acabou violando Merope (filha do Rei Oenopion de Chios). Oenopion (filho do Deus Dionísio) vingou-se pedindo ao pai que enviasse os sátiros para colocá-lo em sono profundo, assim podendo cegar Órion. Ele foi expulso de Chios e vagou até Lemnos, onde Hefesto (o Deus manco do Fogo e da Forja que desposou Vênus) ordenou que seu servo Cedálion guiasse Órion até o extremo leste, onde Helios, o Sol, o curou. Órion seguiu, ainda com Cedálion em seus ombros, novamente a Chios para vingar-se de Oenopion, mas este já havia fugido e se escondido. Seguiu depois à Creta onde caçou com Diana e sua mãe Latona. Durante tal empreita resolveu que destruiria toda a besta sobre a Terra, e então a Mãe Terra opôs-se enviando um Escorpião Gigante no encalço de Órion. A criatura matou o caçador e Diana pediu a Zeus que o colocasse entre as estrelas. Zeus o fez, e também transformou o Escorpião em uma constelação. Outra versão diz que enquanto viveu como caçador com Diana, estivera para casar-se com ela. Apolo, com ciúmes da irmã, censurava-a, mas sem resultado. Um dia, maliciosamente, Apolo desafiou Diana, a Deusa-Arqueira, a acertar um ponto distante que se movia no mar. Diana venceu o desafio, porém mais tarde veio a descobrir o corpo de Órion na praia ferido fatalmente por sua flecha. A Deusa, vertida em lágrimas, situou Órion entre as estrelas.

sábado, 24 de outubro de 2009

Admirável Mundo Novo… (Parte VII) — A Gravidade da Questão…

A gravidade é doce. É como ser suavemente puxado para a alcova dos amantes; um convite. A gravidade sussurra: “Vem…”, toco o solo mais do que gentilmente, cerimoniosamente. Qualquer marca que fizesse poderia ficar lá para sempre. Para sempre… tal coisa definitivamente não existe! …senão enquanto acreditarmos… enquanto acreditarmos que o para sempre é agora.

A gravidade é doce. Como se eu trouxesse a própria Lua ao meu alcance ao me abaixar para tocar o solo com minhas mãos; meu vício da textura.

Sentado à orla do meu Admirável Mundo Novo, velho mundo ganha uma conotação mais abrangente.



Na posição do Le Penseur, eu era a inspiração para uma nova versão; Le Vampire Penseur:






Por vezes é necessário
afastar-se da humanidade
para ser mais humano…

Por vezes é necessário
deixar de ser humano
para entender a humanidade…

Um por vezes constante
torna-se um sempre…
Um hábito da eternidade!

E para sempre
mais humano que humano…
mas ainda parte da Natura?


Sentado à orla dos meus pensamentos, eu procurava um sentido para tudo aquilo, um sentido que transcendesse o simples momento de tamanha beleza. Então te senta ao meu lado. Pensa que isso também é teu: o momento. Pensa que tudo isso é teu: nossas esferas dançantes. Pensa em tudo o que está sendo feito lá. Quem de nós será o primeiro a rir, ou a chorar?

Sentado à orla de um abismo infinito. Para baixo, para cima… são conceitos tão sem valor por aqui; padrões da limitação humana. É mister para os humanos que tudo caia para baixo… A gravidade na Terra é um demônio que puxa os pés das criancinhas e sussurra em seus ouvidinhos: “…não podes voar…”; um padrão imposto da limitação humana, e assim elas crescem. Os humanos acreditam tão facilmente nos demônios! Antes acreditassem em si mesmos; mas maldito o homem que confia no homem.

A raça humana atualmente é sinônima de desperdício. Humanos desperdiçam. O verbo é intransitivo para sujeitos humanos. Talvez o passado de milhares de anos da fatídica luta diária pela sobrevivência tenha gerado esse padrão comportamental de um cão que devora em desespero e engole quase sem mastigar tudo o que lhes couber no prato mesmo quando há fartura.

E quando não há prato, nem comida, ainda há barro seco misturado com um pouco de sal e manteiga para comer. E eles devoram em desespero e engolem tudo quase sem mastigar no meio de uma guerra sem sentido; ó padrão da limitação humana. Daqui eu vejo a fome e sua boca enorme. Daqui eu vejo a guerra e suas garras afiadas.



Às vezes me sinto como Akasha… querendo acabar com a fome eliminando os famintos; querendo acabar com a guerra destruindo tudo. É como ensinar uma criança a não ser agressiva batendo nela. Akasha podia até ter feito a coisa funcionar, mas ela quis zerar o contador da raça humana já com milhares de anos de conta… Ela quis apagar o que não se pode delir: O Tempo. E qualquer intervenção não deve cair diretamente sobre os humanos, mas sim sobre esse padrão da limitação humana, esse paradigma da humanidade, esse demônio milenar que paira sobre suas cabeças…

…e sobre a minha cabeça algo me atira de cara na superfície do satélite; “meteorito?”, pensei. Mas metros e metros de inércia e então o atrito deixando, para sempre, marcas… mais em mim do que no solo…

…no solo…
…no solo… …perdendo…
…no solo… …perdendo… …a consciência…


“Aquele que um dia ensinar os homens a voar deslocará as barreiras; fará saltar todas as barreiras, dará à Terra um nome novo, chamar-lhe-á ‘a Leve’.”
[NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra. "Do Espírito de Gravidade"]


Le Penseur: O Pensador é uma das mais famosas esculturas de bronze do escultor francês Auguste Rodin. Retrata um homem em meditação soberba, lutando com uma poderosa força interna. Originalmente chamado de O Poeta, a peça era parte de uma comissão do Museu de Arte Decorativa em Paris para criar um portal monumental baseada na Divina Comédia, de Dante Alighieri. Cada uma das estátuas na peça representavam um dos personagens principais do poema épico. O Pensador originalmente procurava retratar Dante em frente dos Portões do Inferno, ponderando seu grande poema. A escultura está nua porque Rodin queria uma figura heróica à la Michelangelo para representar o pensamento assim como a poesia.

Akasha: Sob a descrição: “Quase linda demais para ser verdadeiramente bela, por sua beleza superou qualquer senso de majestade ou mistério profundo.”, tornou-se o primeiro vampiro nas Crônicas Vampirescas de Anne Rice. Em A Rainha dos Condenados tenta impor uma nova ordem mundial e matar 90% dos homens do mundo, alegando que eles são a causa da desgraça de toda a Terra, assim, podendo erigir um novo Éden, no qual cada mulher reinaria, com Akasha entronada como deusa eterna e com Lestat ao seu lado. Debaixo de sua beleza física, Akasha sempre foi uma pessoa fundamentalmente sombria, vazia, niilista, sem senso de moralidade, ética, ou de compaixão humana, e suas ações foram quase sempre baseadas em sua insaciável necessidade de preencher seu vazio interior, mesmo antes de se tornar um vampiro. Akasha também é a palavra em sânscrito correspondente a Aether, que é a divindade grega que personifica o céu ou os ares elevados respirados pelos Deuses do Olimpo, filha de Erebus e da Noite ou do Caos e da Escuridão.