Prólogo

É aquela velha história…
Vampiros fingindo ser humanos fingindo ser vampiros…

Mas a maioria dos missivistas estão mortos…
O Theatre des Vampires há muito desfeito… — Nada poderia ter sido tão maravilhoso como Arte e repugnante como Conceito Ideológico…
Os Antigos dormem, ou apenas perderam o interesse pelo que tem Substância Material… — Recuso-me a falar dos que enlouqueceram…
Os que se fizeram de Heróis, um dia, foram tragados por uma Escuridão de Dúvidas e abarcados pelo que se revela sem abandonar o seu Mistério… — O Desespero Silencioso é um dos acometimentos mais terríveis sobre qualquer tipo de existência.




Então eu não estou aqui para ser herói, ou qualquer coisa assim… Eu sou um Pretexto para a Poesia… foi assim que fui concebido… foi assim que consegui manter alguma Sanidade…
Não que eu seja imune aos Lépidos Desesperos Devoradores de Alma… mas eu sempre fiz de tudo para me manter em movimento, no fluxo das coisas, desde antes de ser entregue ao Irremediável Poder das Trevas… — um dia eu conto essa história…
É por isso que eu continuo… e vou continuar até que o Sol devore este nosso Planetinha, vocês vão ver. E se quiserem ver mesmo… bom… vão ter de implorar por uma mordida…

sábado, 1 de janeiro de 2011

Admirável Mundo Novo… (Parte XVI) — A História de Órion… (Parte VIII) — A Queda…

— E essa foi a paz que vivi. Essa foi a minha juventude. Eu contei isso tudo dessa maneira, pois eu queria que entendesses o que Creta um dia foi para mim… Enquanto estive lá embaixo, esse tesouro que foi roubado com a minha juventude jamais retornou… — Órion continuou a sua História e falava de si como se falasse de outrem, talvez até quase espantado com a sua própria narrativa. E esse não é o segredo para tudo o que é feito de Alma e Coração? Quando menos percebi, meus sentidos eram lepidamente corrompidos pelo olor salgado e pela grama macia de Vathypetro; Órion continuou a sua Juventude e falava de si como se falasse da História da Humanidade:

“Tudo teve início quando os chacais começaram a atacar as fazendas apenas durante as noites; ataques separados por distâncias impossíveis em noites consecutivas: fazendas do Oeste eram atacadas numa noite, e na noite seguinte fazendas do Leste eram atacadas. Cogitou-se a possibilidade da existência de mais de um bando, porém nada mais do que sombras e olhos brilhantes foram vistos por algum tempo…

Nim, no meio de uma noite, foi até o meu quarto. Mesmo eu, o caçador do sono mais leve, só a percebo quando pula para dentro dos meus lençóis:

— Meus sonhos me mostram a ti, Hyron… — disse ela sem rodeios e se enroscando toda no meu corpo. — Meus sonhos me mostram que a morte te espreita, que os montes têm olhos e que uma paciência secular grita, no silêncio descuidado das mentes, a sua obsessão… — a voz dela perdendo a força, cada vez menos audível. — Como se houvesse uma teia… em todas as direções, e não tem fim… ela avança na tua direção… meu… irmão… — ela é roubada para o mundo dos sonhos novamente. Como se tivesse sido um esforço enorme ter conseguido aquelas palavras com alguma coerência.



Durante o dia eu reunia informações de quando e onde ocorreram os ataques… eu tentava divisar algum padrão. Quando anoitecia eu já estava armado, e no entorno da residência eu encarava a escuridão com Syrius e Maera por algum tempo. Então eu acendia os archotes e por um instante eu via aqueles olhos brilhantes que eu pensava existir só em minha mente, já que os cães não davam alarme algum.

Eu comecei a vagar pela ilha sem destino… eu regressei a todos os pontos de ataques, eu voltei ao monte Dikte, eu adentrei fundo em Psychro, enfrentei os ventos gelados das Montanhas Brancas e varri a ilha de volta para o extremo Leste até Zakros sem encontrar qualquer coisa. [mapa]

Durante as noites meus companheiros fiéis: Syrius, Maera e o Silêncio fitavam comigo o mar longínquo, e eu pensava no Mundo; não… eu apenas adivinhava o Mundo! E eu só precisava fazer uma coisa… Eu sonhava com muralhas feitas de dentes e olhos brilhantes de chacais quando eu dormia.

Quando eu já não tinha mais conta do tempo em que eu estava fora de Vathypetro, e não muito longe dali, Nim, e seu dom de me encontrar, veio até mim. Ela tinha um sorriso discreto e branco e um olhar expansivo e negro; ela me abraçou e disse ao ouvido:

— O pai quer ver-te…

Ela me deu a mão e caminhamos em silêncio puxando os cavalos pelas rédeas, acompanhados por Syrius e Maera em direção a Vathypetro.



— Noto que passas por alguma dificuldade… e de que adianta a guerra declarada se não vês o inimigo! Ficaste sabendo do ataque desta noite em Lebena? [mapa] — meu pai não me dá tempo de resposta. — Hyron… estou indo resolver negócios em Thera e depois irei ao Egito. Bem… eu só queria mesmo te ver antes de partir. Eu confio em ti, mas toma cuidado e mantenha-te atento! Há muita coisa estranha em torno disso tudo. E quando saíres nas noites, nunca deixe de levar Syrius e Maera contigo. Estás pronto para sair em expedição conosco, portanto não permaneças obcecado na caça… simplesmente alguém tem de resolver isso. Como eu disse antes, eu confio em ti! — O peso da responsabilidade da mão de meu pai em meu ombro esquerdo era grande e a confiança que ele repousava suavemente em mim uniam-se e transformavam-se em força; ele sabia.



Meu pai partiu com meus irmãos e a comitiva toda nos dois navios, e eu dormi em casa naquela noite. E sem saber se foi sonho ou não… — eu estava exausto e minha cama foi uma benção. — Nim com as vestes ritualísticas de Sacerdotisa, os seios desnudos e um sopro na fala:

— Daqui a três dias vai ao Santuário de Dikte ao anoitecer… — ela me sela uma beijo nos lábios e sinto o gosto do mel por um instante, porém não era a minha irmã; eu havia sido convocado por uma sacerdotisa da Deusa.

Eu não a vi nesses três dias em que permaneci em Vathypetro…



Com as Montanhas Brancas às minhas costas, banhadas pelo carmim do crepúsculo, eu cavalguei, seguido pelos meus companheiros caninos, cruzando o vale até o Santuário de Dikte. Uma hora e meia depois a noite abraçava suavemente a ilha trazendo frescor. Uma hora e meia depois eu encarava os portões fechados de Kato Syme. Nenhuma tocha acesa fora ou dentro e apenas a lua minguante impedia a total escuridão. Não havia ninguém lá. Eu fiquei encarando a edificação como se isso fosse me dar alguma resposta. Estive prestes a erguer a voz e chamar por minha irmã, mas um senso apurado de qualquer coisa me calou. Deixei os cães cuidando do cavalo e contornei o Santuário para ter certeza de ninguém estar lá mesmo. Lentamente eu avancei até o pátio que ficava nos fundos do Santuário, tentando divisar os contornos das coisas do que eram sombras, tentando entender se o que eu via: a silhueta de uma pessoa sentada na orla do pátio e a silhueta de um cão correspondiam à realidade. Dei tempo aos meus olhos de se acostumarem para desvanecer a ilusão, mas às vezes a imaginação é insistente, mas às vezes a imaginação é a imagem da própria realidade. Eu me aproximei lentamente, deixando-me notar para não assustar quem estivesse ali. Os contornos tornando-se mais definidos com o aumento da proximidade; nem a pessoa nem o cão se dão o trabalho de olhar na minha direção. Era um homem afinal; o interpelei:

— Quem és… … … — Descubro que o cão é um chacal.

O animal se refestelava com voracidade numa tigela, e o homem contemplava de perto a cena toda.

— O meu nome é Asclepius. — Disse sem se voltar para mim, e a minha melhor reação foi nenhuma. — Senta-te aqui ao meu lado… prometo que não mordo… — Enfim tornou-se para mim com um sorrisinho ligeiro no canto da boca. — Mas claramente é de minha companhia que receias os dentes.

— … — A minha resposta mais criativa! Eu estava em choque. Eu atravessei a ilha toda atrás daqueles chacais, e aquele homem senta-se ao lado de um enquanto o alimenta!? Na minha mente eu sacava a espada e partia o animal ao meio, mas alguma coisa me impedia o culminar da ação.

— Eu sei o porquê de estares aqui… mas a grande questão é: Tu sabes?

Como se uma corda invisível em torno de mim se afrouxasse:

— Foste tu! Trouxeste estas pragas para a ilha!

— Desde que vagar se tornou o teu destino… achas que agora encontraste o que tanto procura? Eu não estou falando de vagar pela ilha! Não és tu o jovem que vaga com a mente?… criando teus próprios mistérios, tornando-te um instrumento do destino na mão de oráculos e criando teu próprio abismo de dúvidas! Tu vais afundar nele deste jeito, rapaz, mais cedo ou mais tarde…

— E quem és tu para me dizeres essas coisas com esse ar professoral, apenas aumentando o meu abismo de dúvidas? — escorrego a minha mão irônica gentilmente ao cabo da espada de bronze. — Diga! Quem és tu de verdade? E por que trouxeste estas feras para a ilha?

— Ora, a juventude não tem paciência nenhuma… nunca!

Ele estava enganado. Ele tinha aquela aparência pacífica de quem viveu para o estudo, e o ar professoral era algo intrínseco a ele, apesar de eu estar querendo golpeá-lo com a minha espada; ele e aquele chacal. Não eram os cabelos e a barba perfeitamente encaracolados, não eram os olhos de uma profundidade quase tediosa, ou a sua túnica muito branca e muito bem alinhada que me impediam de atacá-lo… Não se ataca um completo desconhecido! E eu só precisava saber quem ele era de verdade… Paciência era a única coisa que eu tinha de verdade! E logo eu teria um colete de pele de chacal… e um pouco de vingança. Foi o que pensei no momento.

— Eu os tirei de um navio fenício. Maltratados quase à beira da morte. Não sei porque exatamente o fiz, mas não estava certo aquilo. Eram apenas animais não entendendo o motivo de seu próprio sofrimento. Eu sou médico e qualquer tipo de sofrimento, sobretudo o imposto, se tornou um inimigo declarado… — Dessa maneira ele falou sinceramente comigo. — …mas obviamente eu fui movido pelo impulso.

— E de onde tu vens?

— Venho da cidade de Naukratis no Egito.

O animal terminou de lamber o fundo da tigela e ainda lambendo os bigodes voltou dois olhos vidrados para mim… sim, duas esferas de vidro como se houvesse alguma chama própria em seu interior. Depois, como se nunca tivesse visto o mundo antes, perscrutava com os olhos na escuridão, movendo a cabeça muito rápido em todas a direções, como se estivesse sobressaltado e curioso por tudo, como se tudo roubasse a sua atenção ao mesmo tempo. Asclepius produziu um som sibilante, levou a mão com a palma voltada para cima e o punho cerrado sobre a tigela e fez que ia colocar alguma coisa lá, mas girou o pulso levantando o indicador e o balançando negativamente frente ao focinho do animal. Eu permaneci em pé observando tudo de perto; perto demais…

— Tu sabes que os chacais mataram uma criança e muito provavelmente o pai dela, cujo corpo nunca foi encontrado! Fora todo o prejuízo e a carnificina de outros animais! E tu acabaste de afirmar que eles são teu séquito… Acabaste de afirmar a tua culpa! Onde estava a tua repulsa pelo sofrimento?

— Eu não me isento da culpa; mas tu desconheces as circunstâncias! Sou culpado desde que os resgatei, os curei e alimentei… Entretanto a questão não é esta; a questão é: como vais matá-los?

— Achas que podes me impedir?

— Hyron!… Mata-os! É o que eu quero! Apenas tu! Não chama os cães senão eu os mato!

— Que tipo de brincadeira é ess… … …? — Eu saquei a espada e ia esfregá-la na cara dele, mas Asclepius, que antes estava sentado, já estava atrás de mim segurando meu rosto com a mão esquerda e um cajado rústico de carvalho defronte meu rosto com a direita. Abriu-se uma tampa da ponta do cajado e de lá saiu uma cobra verde a me lamber a cara. O chacal não se moveu; e eu também não…

— Tu não queres matar os chacais? Então, rapaz… é isto que está acontecendo! — Ele falou ao meu ouvido, sibilando. Eu senti uma força terrível, como se eu estivesse preso nos braços pétreos de uma estátua. No instante seguinte, muito rapidamente, não havia mais nada me prendendo e Asclepius se afastou pelas minhas costas. Quando virei, ele já estava longe e de costas para mim. Sentou-se novamente na orla do pátio e, com um estalo duplo na língua, chamou os chacais. E eles vieram…

Surgiam de todas as direções os quatro outros chacais, cercando-me. Eu estava fervendo de raiva pois não estava entendendo nada. Pensei em chamar os cães, mas Asclepius pareceu bastante convincente. Assim sendo, ele bateu palmas de longe e disse:

— Muito bem Hyron, é contigo! — estranho foi que aquilo ara coisa que meu pai dizia! E as tochas ao redor do pátio se acenderam por magia.

O chacal que estava bem na minha frente desde o começo armou-se e saltou na minha garganta. Fiz lhe engolir a minha espada até a guarda. Os outros quatro que chegaram depois investiram todos juntos e não tive tempo de fazer muita coisa; eles estavam muito perto. Cruzei dois golpes de espada nos que investiram pela frente, mas eles esquivaram. Chutei com a sola do pé o focinho de um dos que vieram por trás, mas o outro enterrou os dentes no meu tornozelo direito. Golpeei-o no meio das costas, com muita força, dividindo-o em dois; mas o desgraçado continuou me mordendo. Nesse pequeno instante o chacal que havia levado o chute conseguiu alcançar meu outro tornozelo e imediatamente os outros dois que estavam bem de frente para mim avançaram rapidamente com as bocarras abertas. Consegui acertar um golpe nos dois, cruzando a espada lateralmente e decepando-lhes os maxilares inferiores antes que eu caísse no chão. Os chacais sem a maxila saltaram sobre mim e o único chacal que ainda estava inteiro largou o meu tornozelo e avançou na minha cara. Empurrando os outros dois animais ofereci o braço esquerdo de sacrifício; ele mordeu e eu estoquei a espada em seu coração. O meio-chacal roeu tanto meu tornozelo que eu o sentia raspar os dentes no osso de minha canela; enfiei-lhe a ponta da espada na cervical, desconectando-a da cabeça. Ele caiu. Nisso, o primeiro chacal que sentiu o gosto do bronze da minha espada levantou-se cambaleante, decerto querendo mais ao caminhar trôpego na minha direção, e eu quase não acreditei naquilo. Os outros dois, mesmo sem poder, tentavam absurda e instintivamente me morder, mas só conseguiam cortes superficiais e arranhões; segurei um de cada vez pelas orelhas e fiz a espada abrir caminho pelas costelas até o coração. Tentei levantar-me, mas não consegui, e de joelhos esperei que o último chacal entrasse no alcance da espada; tive de dar três golpes em sua cabeça para enfim tombá-lo. Assim, caí para o lado, virado para Asclepius e o que vi sob as luzes ardentes dos archotes foi uma estátua de mármore com olhos de chacal; não, os chacais é que tinham os olhos dele. A dor corrompia a minha consciência e eu pedi: “Nim… ajuda-me!”. E eu afundei num abismo escuro… “…mais cedo ou mais trade…”, a voz de Asclepius dizia. Mas antes de afundar mesmo, ouvi um barulho terrível como se fosse o urro da Terra. E a terra tremeu… e foi aberta, envolvendo-me numa queda eterna… Sim, acho que foi aí que comecei a cair de verdade…



“Quem luta com monstros deve velar para não se tornar um monstro. E se tu olhares demoradamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.”
[NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal, § 146.]

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