Prólogo

É aquela velha história…
Vampiros fingindo ser humanos fingindo ser vampiros…

Mas a maioria dos missivistas estão mortos…
O Theatre des Vampires há muito desfeito… — Nada poderia ter sido tão maravilhoso como Arte e repugnante como Conceito Ideológico…
Os Antigos dormem, ou apenas perderam o interesse pelo que tem Substância Material… — Recuso-me a falar dos que enlouqueceram…
Os que se fizeram de Heróis, um dia, foram tragados por uma Escuridão de Dúvidas e abarcados pelo que se revela sem abandonar o seu Mistério… — O Desespero Silencioso é um dos acometimentos mais terríveis sobre qualquer tipo de existência.




Então eu não estou aqui para ser herói, ou qualquer coisa assim… Eu sou um Pretexto para a Poesia… foi assim que fui concebido… foi assim que consegui manter alguma Sanidade…
Não que eu seja imune aos Lépidos Desesperos Devoradores de Alma… mas eu sempre fiz de tudo para me manter em movimento, no fluxo das coisas, desde antes de ser entregue ao Irremediável Poder das Trevas… — um dia eu conto essa história…
É por isso que eu continuo… e vou continuar até que o Sol devore este nosso Planetinha, vocês vão ver. E se quiserem ver mesmo… bom… vão ter de implorar por uma mordida…

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Admirável Mundo Novo… (Parte XVII) — A História de Órion… (Parte IX) — Sonhos do Lado Sombrio da Lua…

Entendas que o tempo e a própria percepção dele nos é diferente e deveras peculiar. Às vezes como se houvesse uma eternidade encerrada em certos momentos e eventos de nossa Existência Duradoura. O foco em algo específico pode nos levar a uma experiência assim. Subjetivamente e obsessivamente conseguimos extrair uma quantidade tal de detalhes desse algo específico, que ocorre o engendramento de memórias e experiências de uma total outra existência nossa; mas ainda assim a mesma. Ao passo que em outras circunstâncias podemos nos abstrair totalmente ao olhar uma pintura do Tenebrista Caravaggio, uma escultura do Gênio do Eterno Instante Lapidar: Rodin, ou uma simples porta de madeira cujos entalhes se assemelham a uma teia humana de intrigas. Podemos fazer isso até que o Sol e os Sinos do Inferno venham ao nosso encalço, ou até mesmo alguns dias, meses, ou anos sem conta, sem ao menos piscar, se tivermos abrigo e formos antigos o suficiente para nos mantermos acordados sob o avanço do Sol sobre a Terra. Bem, estou a dizer tudo isso para que entendas sobre essa questão do tempo e da percepção dele para nós. Para que entendas que durante quase quatro anos, Órion e eu, Endímion, estivemos lado a lado contemplando em silêncio o vazio, após aquelas últimas palavras de sua narrativa: “Mas antes de afundar mesmo, ouvi um barulho terrível como se fosse o urro da Terra. E a terra tremeu… e foi aberta, envolvendo-me numa queda eterna… Sim, acho que foi aí que comecei a cair de verdade…”

Destarte, repentinamente, em um tempo que pertencia apenas à sua compreensão, Órion continuou sua história narrando as sutilezas das cenas projetadas em minha mente:

“Como se eu estivesse afundando em algo melífluo. Melífluo e negro, algo doce e maligno. De uma profundeza imperscrutável, eu afundava vertiginosamente, desesperadamente tentando emergir de um abismo, tentando despertar de um pesadelo entretecido ao que é essencialmente absurdo. Entretanto aquele abismo tinha uma outra característica bastante peculiar: aquele abismo era eu. Quando constatei isso, quando entendi isso definitivamente… foi quando despertei. Um esforço derradeiro para agarrar minha consciência através de uma experiência rumo a obliteração e aniquilação total da minha existência; aniquilação e encerramento eterno em mim mesmo. Pensei estar encarando a morte; mas era apenas eu. Nunca tive tanto medo. E com esse sentimento meus olhos abriram. Meus olhos abriram e tudo eram cinzas…

Ofeguei buscando meu tornozelo pela imediata lembrança de um chacal cavando minha carne até os ossos, entalhando neles e em minha mente uma memória indelével de dor… mas permanecendo uma marca, nada mais que uma marca em minha pele. Ergui-me de uma espessa camada de cinzas, como se uma centena de anos tivesse passado. Ligeiramente intrigado pela sensação da distância com o solo, corri pela lenta tempestade de um inferno que deixara de queimar. “Condenado”. O ar tinha gosto de cinzas. “Condenado”. Não havia contrastes. O vento não soprava. O mesmo tom de cinza. “Condenado”; eu me ouvia dizer na minha própria cabeça.

Enquanto os flocos de cinzas pairavam no ar, eu corria. Não vi Syrius, Maera, ou meu cavalo; eu não via nada claramente. Eu era movido pelo desespero do não entendimento do que estava acontecendo, e pelo desespero de ter as imagens de Nim e de minha mãe em minha mente. De início pensei que a visão dos flocos de cinzas caindo lentamente me davam a impressão de estar correndo mais rápido do que eu poderia. Naquele momento acreditei que aquele sentimento despertou em mim alguma força adormecida. Um engano que jamais pensei ser possível naquele tempo. Quando comecei a colocar os pensamentos em ordem, eu já estava nas proximidades de Vatypetro. Nim esperava por mim, imóvel, coberta de cinzas. Seus olhos negros brilhando sobre o fundo opaco de tudo. O brilho da certeza, tão profunda quanto o abismo que eu havia experienciado pouco antes. Ela sabia. A sacerdotisa sabia; mas minha irmã apenas me abraçou.




— Vatypetro não existe mais. — Ela disse enquanto ainda nos meus braços e enlaçada em minha cintura. Tento me desvencilhar, mas ela não permite. — Calma! Calma… Está tudo… bem. — A hesitação quase me faz duvidar. — Vamos caminhar um pouco. Você precisa entender o que está acontecendo.

Eu puxei o rosto dela na frente do meu para fazer a pergunta. Ela parecia ter encolhido desde a última vez que a vi, e mais ainda entre minhas mãos. Minha visão tremeu hesitante, mas ela me salvou:

— A mãe está bem, Hyron. — Respiro aliviado, mas a sensação era a de que tudo o que havia, além de Nim e eu, eram cinzas.

Caminhamos ao lado do silêncio e sobre a tristeza em forma de pó. Naquela parca luz difusa eu me questionava se era dia. O cinza tornando tudo tão naturalmente soturno. Estávamos um pouco distantes de Vatypetro, em vez de descer a colina à nossa direita e ir em direção ao canal portuário ao norte, para alcançar a vila, estávamos subindo, indo na direção do Monte Ida [mapa]. Sobre o Monte seria possível ver o mar, que começou a se tornar um mistério e um objetivo para mim, assim que, alguns anos antes, Nim trouxera até mim um pergaminho em couro contendo a cópia de um hino à Deusa, personificada por Inanna, escrito por Enheduanna, uma sacerdotisa acadiana, juntamente com uma gravura representando sete mares. Ela estava totalmente emocionada com o conteúdo provavelmente milenar do texto, com uma tradução da escrita suméria para a escrita egípcia, que era o que conseguíamos ler, e eu me interessei totalmente pela possibilidade do inexplorado daqueles mares. Era meu pai que em suas viagens sempre trazia pergaminhos e tabuletas com todo o tipo de informação que ia desde receitas culinárias a diários sazonais de uma região. Esses textos eram vendidos para o Arquivário de Knossos, mas a curiosidade de Nim e, principalmente a minha, fazia com que fossemos os primeiros a ter acesso aos textos. Quando inquiri meu pai acerca desses mares, ele me apontou com o dedo, dizendo ter navegado por dois deles; mas ele também disse que acreditava haver bem mais do que a gravura mostrava, e que eu entenderia quando eu estivesse em alto-mar e sentisse o que se sente quando não há nada mais para se contemplar em todas as direções a não ser água salgada. Eu pensava em meu pai estando lá em algum lugar daquela vastidão, e que eu deveria estar lá com ele; entretanto, com a mão direita em meu ombro, ele havia me mandado caçar os chacais.

— Antes de partires para o Santuário de Dikte há algumas noites atrás, eu estive no Santuário de Iouktas para a preparação e realização dos rituais da Lua Nova. Então, na noite após o rito formal, todas as sacerdotisas tiveram… sonhos… — ela me olha com o canto do olho.

— Sonhos…?

— Sim. Ehlay sonhou que foi gentilmente tomada pelas mãos por outras sacerdotisas, levada até a costa norte e enterrada na areia da praia até o pescoço, voltada para o mar. As sacerdotisas correram e gritaram por sobre os ombros delas que o ritual tinha que continuar, ao mesmo tempo em que ela observava impotente uma vaga gigante se aproximar da costa e, ao lado dela, simplesmente surgia em sua visão como se sempre tivesse estado ali, um homem apoiado em um cajado, vestindo uma toga muito branca, manipulando um colar de contas negras na mão esquerda ao voltar um sorriso triste e discreto para ela. Não consigo descrever o terror que vi nos olhos dela enquanto ela contava o sonho para as outras sacerdotisas afirmando que a impressão havia sido tão real quando a vaga a atingiu e ela não conseguiu acordar.

— Manasa contou seu sonho abraçando a si própria, com os olhos arregalados olhando para o nada. Ela sonhou com um homem que vagava torpe em uma cidade em que era dia mesmo enquanto noite; mas ele não podia ver isso, ela disse. Ela também disse que havia uma presença velada por traz do sonho, algo sem substância, mas ainda sim totalmente nefasta, observando todos os acontecimentos, esperando um único. Ela se sentiu oprimida e amaldiçoada apenas por tomar conhecimento da existência de algo assim; mas como presa em uma teia, não conseguia acordar.

— Esi sonhou com uma grande montanha viva. Ela viu a grande montanha ser enganada por um ancião com a vivacidade de um jovem; ou talvez fosse um jovem com uma experiência cuja soma não está ligada ao tempo. Ela disse que o sonho foi muito confuso, fora da ordem dos acontecimentos, como se o próprio tempo estivesse sendo afetado pelos eventos. Esi disse que havia um conhecimento implícito na sua função de expectadora no sonho: o puro medo engendrando aquilo que mais se teme. A montanha viva colapsou sob uma massiva tempestade de raios e atirou-se a si própria em todas as direções na tentativa de deixar algum legado, mesmo que fosse a pura destruição.

— Erinys sonhou que estava presente em um conciliábulo de guerra, disposta entre homens e mulheres ao redor de uma mesa redonda de pedra polida em que repousava um grande mapa representando Creta e todas as terras conhecidas ao redor. Um anel de ouro girava sobre o mapa, continuamente, e de maneira espontânea próximo a Creta, sobre a ilha de Thera. As bordas do anel tocavam precisamente a orla desenhada no mapa com o formato circular da ilha. Alguns homens sorriram, outros olharam com indiferença, enquanto outras mulheres recuaram vários passos com sombras sobre seus rostos, afastando-se do foco da cena. O anel lentamente foi mudando de cor e tornando-se rubro-incandescente enquanto girava. Quando o mapa começou a se deteriorar em uma mancha escura sob o calor, o anel explodiu danificando um pedaço do mapa sob Thera, e os fragmentos incandescentes do anel projetaram-se para atingir no peito um dos homens com feições características das terras do Egito. Com os fragmentos incandescentes incrustrados no peito o homem gritava pragas enquanto sangue escorria de sua boca sobre o mapa, tingindo o Nilo de vermelho. Homens disputaram com suas cabeças, ombro a ombro e com os braços atrás das costas como se estivessem amarrados, para terem a chance de pousarem a testa sobre a demarcação do Egito no mapa. Sobre suas testas haviam marcas com nomes de diferentes deuses; mas não foi isso que chamou a atenção de Erinys. Um homem saiu de trás de toda a confusão e através dela, como se nada importasse, alcançou o mapa e rasgou a demarcação de Creta de lá. Ele simplesmente virou as costas e começou a se distanciar do foco da cena com o fragmento em sua mão. Mas antes de desvanecer ele parou de costas, olhou por cima do ombro, sorriu e quase que imediatamente mudou para um semblante de puro terror, mortificado, quando viu algo que não estava no… … …

— Nim! Como foi o teu sonho? — Interrompo. Ela disse que eu precisava entender. E eu achei estar começando.

— Bem, todos os sonhos foram transcritos no diário do templo e…

— Nim! — Eu obstruo o caminho dela.

Ela me encara em silêncio por algum tempo antes de responder com um sussurro aveludado, como se isso impedisse que ela realizasse a experiência para si própria.

— Sonhei que eu estava desperta… desperta na escuridão…


“Não deve prometer andar na escuridão aquele que não viu o anoitecer.”
[TOLKIEN, John]



Tenebrista Caravaggio: Michelangelo Merisi, nascido em Milão na Itália em 1571. Mais conhecido como Caravaggio, por sua família ser originária da aldeia Caravaggio. Foi considerado o primeiro grande representante da arte barroca e ficou conhecido por seu estilo tenebrista, ao utilizar uma técnica chamada chiaroscuro (claro–escuro), luz e cor no rosto de seus personagens em primeiro plano, sobre um fundo escuro, trazendo um ar deveras sombrio e dramático às suas obras. O tema religioso compunha a maior parte de suas obras, mas muitas vezes acabava por ferir a sensibilidade de seus clientes ao usar pessoas comuns das ruas de Roma, à margem da sociedade, como modelos para pintar cenas e personagens bíblicos e mitológicos; em geral comerciantes, prostitutas, marinheiros e mendigos, porém, que tivessem grande expressividade, como retratado em suas obras. De personalidade irascível, essa era uma atitude deliberada para provocar a nobreza da época. Sua intenção era chocar, e mostrar a vida como ela realmente é, com os medos, angústias e agonias que nos cercam. Sua pintura foi revolucionária para a época, fazendo oposição consciente ao Renascimento. Em 1606 Caravaggio matou um jovem durante uma briga e teve que fugir de Roma para onde nunca mais voltou até sua morte. Sua vida conturbada e sua personalidade controversa, devem ser a razão para o surgimento de tantas histórias a seu respeito. Uma delas, a mais recente, diz que Caravaggio, que morreu aos 38 anos, teria sido assassinado e seu corpo lançado ao mar por membros da Ordem dos Cavaleiros de Malta, organização católica fundada nas Cruzadas. Essa versão é sustentada pelo historiador de arte e especialista na obra de Michelangelo Merisi, Vincenzo Pacelli, na obra intitulada Caravaggio – entre a Arte e a Ciência. A prova estaria registrada em documentos secretos do Vaticano, que teria aprovado a execução, e o crime seria uma revanche.


Caravaggio: David com a Cabeça de Golias


Enheduanna: Pode ser traduzido como Alta Sacerdotisa esposa de Nanna (deus da lua). Foi uma Princesa Acadiana e poetiza entre 2.285-2.250 a.C. É a primeira pessoa a ter seu nome reconhecido como autora em toda a história datada. Foi elevada ao posto de Alta Sacerdotisa por seu pai Sargon da Acádia (também conhecido com Sargon, o grande), que reinou na Mesopotâmia entre 2.334-2.279 a.C., o primeiro rei a governar um império unindo a Suméria e a Acádia. Não há certeza se ela realmente tinha laços sanguíneos com Sargon, ou se ela carregava um título figurativo, porém, Sargon depositou grande confiança em Enheduanna ao nomeá-la Alta Sacerdotisa do templo mais importante da Suméria, encarregando-a com a responsabilidade de promover o sincretismo entre os deuses sumérios e acadianos, para trazer estabilidade ao império e fazê-lo prosperar. Seus trabalhos mais conhecidos são os hinos: Inninsagurra (A Nobre Senhora), Ninmesarra (A Exaltação de Inanna) e Inninmehusa (Deusa de Temíveis Poderes). Além disso ainda tem-se registrado quarenta e dois poemas que abordam frustrações e esperanças, sua devoção religiosa, sensibilidade à guerra e sentimentos sobre o mundo que a cercava. No sítio de escavação de Ur (sul do Iraque), em 1927, o arqueólogo britânico Sir Leonard Wooley encontrou um disco de inscrições feito de calcita contendo três inscrições identificando quatro figuras: Enheduanna, seu Gerente de Posses Adda, seu estilista de cabelo Ilum Palilis e seu escriba Sagadu. A figura de Enheduanna é colocada de forma destacada no disco, enfatizando sua importância em relação aos outros e, ainda mais, a sua posição de grande poder e influência sobre a cultura de seu tempo. A inscrição a descreve assim: “Enheduanna, zirru-sacerdotisa, esposa do deus Nanna, filha de Sargon, rei do mundo, no templo da deusa Innana.”


Thera: Atualmente chamada de Santorini, é uma ilha no sul do mar Egeu, a cerca de 135 quilômetros ao norte de Creta.

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